quinta-feira, 17 de maio de 2007

...E O VENTO LEVOU

...E o Vento Levou (Gone With the Wind, 1939)
Dirigido por Victor Fleming

Por Matheus Mocelin Carvalho

Restritos são os filmes que conseguem a façanha de tornarem-se lendas em seu próprio tempo. ...E o Vento Levou pode ser considerado um desses raros exemplos. Tido como uma das representações máximas de como um épico cinematográfico deve ser, o filme é provavelmente o maior representante da Era de Ouro de Hollywood. Uma produção que conseguiu estabelecer uma conexão com a platéia como poucos antes ou depois de si ao ponto de entrar para a cultura popular, com seus inúmeros relançamentos provando repetidamente sua enorme popularidade – de fato, se ajustarmos os números pela inflação, ...E o Vento Levou ocupa o posto de maior bilheteria de todos os tempos. O filme também aparece na quarta posição na lista do American Film Institute dos 100 melhores filmes americanos de todos os tempos.

A concepção de ...E o Vento Levou originou com o romance literário de Margaret Mitchell de mesmo nome publicado em 1936. Um fenômeno literário comparável ao recente sucesso de O Código Da Vinci de Dan Brown, o livro teve seus direitos cinematográficos adquiridos pelo produtor David O. Selznick pelo então exorbitante valor de $50,000 dólares. Mesmo em uma época onde a Internet estava há décadas no futuro, a produção era acompanhada de perto pela imprensa e público, com a busca de uma atriz para interpretar a destemida Scarlett O’Hara se tornando uma obsessão nacional (acredita-se que mais de 400 atrizes foram testadas para o papel). A atriz inglesa Vivien Leigh ganhou aquele que é provavelmente o mais famoso papel feminino da história, enquanto o papel de seu interesse amoroso, o capitão Rhett Butler, foi inevitavelmente para Clark Gable (vale notar que, apesar de aparecer em praticamente todas as cenas do filme, o nome de Leigh é creditado em segundo, atrás de Gable). Após uma conturbada produção que passou por três diretores diferentes (apesar de apenas Victor Fleming ser creditado), o filme foi lançado em 1939, se tornando uma febre mundial ainda maior que a do livro que o originou, e logo ultrapassando Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs, 1937) como a maior bilheteria de todos os tempos.

Seria fácil rebaixar ...E o Vento Levou como um melodrama manipulador, originário de uma série de elementos narrativos que se tornariam clichês em inúmeras outras produções dramáticas (como a telenovela). A verdade é que o filme foi produzido em uma época de diferentes percepções estéticas e culturais (tomamos em mente que esta é uma época prévia à linguagem cinematográfica moderna introduzida em Cidadão Kane), e para o público de 1939, esta era uma experiência como nenhuma outra vista anteriormente. O fato de que sua fórmula seria repetida à exaustão apenas comprova o quão inserido na cultura popular a obra se tornou. Outras superproduções tentaram repetir o mesmo ângulo de romance contra cenário histórico (como Doutor Jivago de David Lean e, a certo ponto, Titanic de James Cameron), com resultados nem sempre tão positivos.

A saga de Scarlett O’Hara e sua luta para subir na vida em meio à hostilidade da Guerra da Secessão atingiram um acorde em especial com as platéias de 1939. Ainda sofrendo os terríveis efeitos da Depressão, o público pôde identificar na protagonista sua própria imagem: alguém que vai à falência e chega ao mais profundo desespero, mas que não desiste de lutar apesar das maiores dificuldades. E é tal determinação que ajuda a tornar a tornar Scarlett uma das mais fascinantes e tridimensionais personagens na história do cinema. Provavelmente o maior exemplo de anti-heroína, eis uma mulher que é capaz de chegar a situações extremas para defender sua terra e sua família (como diz no seu apaixonado juramento, ela realmente “mente, rouba, trapaceia e mata”). Educada como uma típica “beldade do sul”, Scarlett é uma jovem mimada e manipuladora que não se conforma quando suas vontades não são atendidas. Seu suposto amor por Ashley Wilkes, por exemplo, se revela ser nada mais do que a ilusão da mente de uma garota por algo que nunca existiu de verdade e um capricho por querer algo que ela não pode ter. A ambígua personalidade de Scarlett é demonstrada em diversas situações ao longo do filme: ela é capaz de ajudar e proteger Melanie (ainda que por dívida a Ashley), mas também é capaz de ser mesquinha e interesseira, chegando a se casar três vezes, sendo que nenhuma por amor verdadeiro. Tal ambigüidade ajuda a tornar a personagem real diante dos olhos do espectador, a afastando das tradicionais perfeitas e imaculadas heroínas.

No papel que mais marcou a carreira de ouro de Clark Gable (e cujo Oscar ele inexplicavelmente perdeu, alguns acreditam que pelo fato de Gable estar interpretando ele mesmo), Rhett Butler é a versão masculina de Scarlett. Ambos são personagens teimosos, autônomos e destemidos, que lutam para sobreviver a seu próprio modo. Talvez por serem tão semelhantes, o casal vive uma relação tempestuosa ao longo do filme, relação esta que é selada com uma das mais célebres frases do cinema. Ainda assim, Rhett se revela uma melhor pessoa do que Scarlett: quando os dois têm uma filha, o capitão se mostra um pai carinhoso e amoroso, enquanto as maiores preocupações dela se referem ao tamanho de seu espartilho. Diversas são as suas tentativas de se aproximar de Scarlett e, quando ela percebe que realmente o ama, já é demasiadamente tarde.

Com personalidades tão definidas, Scarlett O’Hara e Rhett Butler formam um dos mais peculiares casais das telas, podendo ser considerados a antítese de um tradicional par romântico. Enquanto os diálogos de Scarlett e Ashley são exageradamente literários e melodramáticos, as cenas entre o casal interpretado por Leigh e Gable são carregadas de acidez e ironia. Tomemos por exemplo a cena na qual Butler pede a mão de O’Hara em casamento. Uma ocasião que em um filme tradicional poderia ser o momento mais romântico da película, aqui é encenada com uma viúva bêbada que acaba de enterrar o marido e um pretendente que propõe um casamento “apenas por diversão”. Os dois se casam por maior questão de conveniência do que sentimento real: Rhett pelo desejo que nutre por Scarlett e ela pelo seu dinheiro. É dito que Leigh e Gable não tinham uma boa relação no set, mas o que vemos na tela é uma perfeita química entre a dupla, chegando a gerar certa dose de erotismo um tanto ousada para a época (“Ele me olha como se soubesse como fico sem roupas” ela diz ao trocar olhares pela primeira vez com o capitão). Em uma das mais polêmicas cenas do filme, Rhett força Scarlett a ter uma noite de sexo com ele após meses de negação. No dia seguinte, a expressão de satisfação no rosto dela não consegue esconder o prazer sentido na noite anterior.

Os outros dois co-astros do filme, Leslie Howard e Olivia de Havilland, interpretam o casal Ashley Wilkes e Melanie Hamilton. Representando a imagem oposta de Scarlett e Rhett, Melanie é a única personagem realmente boa no filme, se importando com todos acima de si mesma, enquanto Ashley é um homem cujos princípios de honra o impedem de assumir uma relação com Scarlett, mas que se revela ser uma pessoa fraca que vive no passado. Infelizmente, é justamente no papel de Ashley que o filme apresenta uma de suas maiores falhas, tendo início com a escalação do ator. Leslie Howard, na época com quarenta e três anos de idade, não apenas era muito velho para interpretar alguém que deve contracenar com duas atrizes com pouco mais de vinte anos, mas também aparenta estar desconfortável no papel. Acaba tornando-se difícil para o público entender a fixação de Scarlett por Ashley, especialmente quando o roteiro dá ao personagem alguns dos mais fracos diálogos do filme (demasiadamente fabricados e românticos, se analisarmos com uma visão moderna).

Famoso por seus excessos, ...E o Vento Levou faz jus ao seu rótulo de épico, tanto em escala quanto em duração. Sidney Howard, ao lado outros roteiristas não creditados, faz um competente trabalho na adaptação do romance com mais de mil páginas de Margaret Mitchell para as telas. Com quase quatro horas de duração (incluindo introdução e intervalo), é um esforço admirável que a atenção do espectador seja capturada até os últimos instantes do filme. Alguns problemas podem ser encontrados na segunda parte da obra, quando a narrativa se torna mais episódica e menos movimentada, mas ainda assim somos brindados com momentos de diálogos muito bem escritos e com reviravoltas o bastante para carregar o filme até seu derradeiro final. Enquanto é verdade que algumas cenas poderiam ter sido diminuídas ou totalmente excluídas, e que a parada de tragédias que atinge os personagens nos últimos minutos pode parecer excessiva, a longa duração contribui para a sensação final de que ...E o Vento Levou é realmente uma poderosa experiência.

Há alguns elementos que não envelheceram tão bem aos olhos de nossa sociedade politicamente correta, a principal delas sendo a representação dos afro-americanos. Alguns criticam o filme por mostrar personagens negros estereotipados, e escravos que se mostram felizes por trabalharem para seus mestres brancos. Um fato que pode passar negligenciado é que Mammy (na atuação de Hattie McDaniel que lhe rendeu o Oscar) é uma das personagens mais sensatas do filme, constantemente repreendendo as canalhices de Scarlett e sendo muito querida pelos demais personagens. Algo a considerar é que ...E o Vento Levou foi produzido em uma época com sensibilidades diferentes, e seria errado julgá-lo com olhos atuais. Como disse Roger Ebert em seu livro Great Movies, “um ...E o Vento Levou politicamente correto não valeria a pena ser feito, e poderia enormemente ser uma mentira.”

Independente de deficiências históricas e narrativas, é inegável que estamos falando de um dos filmes mais cuidadosamente produzidos da história. Desde os créditos iniciais onde os títulos se arrastam pela tela acompanhados da épica trilha sonora de Max Steiner, o espectador pode ter a certeza de que está na presença de algo verdadeiramente grande. Na época de seu lançamento, ...E o Vento Levou elevou a arte dos independentes departamentos do cinema ao máximo do que podia ser alcançado. Apresentando uma visão romântica do Velho Sul, o filme é extremamente detalhista em seus grandiosos cenários repletos de figurantes e seus belos figurinos. Um meticuloso estudo de mise em scène revela composições que variam da simples beleza efetiva de um close dos atores a ousados e grandiosos planos abertos. A marcante cena em que Scarlett parte em busca do Dr. Meade em um grande campo aberto, por exemplo, tem início com um plano fechado no rosto de Vivien Leigh reagindo ao que vê a sua frente. Aos poucos o plano é aberto em travelling para revelar uma interminável fila de corpos de soldados mortos e feridos dispostos ao chão, enquanto a câmera se afasta o bastante para revelar a bandeira dos confederados balançando alto contra o vento. As belíssimas pinturas mate (matte paitings) de Jack Cosgrove preenchem cenários e paisagens inexistentes, criando impressionantes visões como as vastas terras das plantações de Tara.

Um elemento que não passa despercebido aos olhos é o marcante uso do Technicolor no filme. ...E o Vento Levou foi o primeiro filme colorido a ganhar o Oscar de Melhor Filme, e também é uma das primeiras obras cinematográficas a mostrar uma preocupação em utilizar as cores para obter um efeito psicológico no espectador. Marcantes são as cenas em que os personagens são destacados em silhueta contra vastos céus avermelhados, estas que contrastam com os frios azuis que acompanham a volta de Scarlett na estrada à sua Tara destruída. O vermelho se faz presente em momentos chave da relação entre Rhett e Scarlett, acentuando o misto de paixão e fúria de seu relacionamento: no céu do crepúsculo durante a cena onde os dois se beijam na ponte após a fuga de Atlanta; na grande escadaria onde Scarlett sofre seu acidente e onde Rhett a leva para o quarto à força. Esta última cena em especial demonstra o virtuosismo técnico e o casamento perfeito entre os departamentos de figurino, fotografia e direção de arte. Não bastasse a natureza polêmica da cena, seu staging faz o uso dramático de sombras e da iluminação oriunda de castiçais e de um enorme lustre que paira sobre a grande escadaria. O vermelho das escadas casa com o vermelho do vestido de Scarlett e, quando Rhett a carrega no colo degraus acima, os dois somem em meio à penumbra.

Talvez uma das chaves para se apreciar ...E o Vento Levou corretamente é se desarmar de maiores preconceitos e aceita-lo como um produto de sua época: uma grande saga sobre pessoas apaixonadas em tempos de guerra como apenas Hollywood sabia fazer. Independente de alguns elementos datados, o filme não perdeu seu poder e a capacidade de prender aos que se renderem à sua dramaticidade. Assim como Scarlett na cena final do filme, indestrutível e incapaz de se render, ...E o Vento Levou continua a se firmar como um dos grandes marcos na história do cinema.

2 comentários:

Anônimo disse...

Opa, adorei o post! Imprimi porque encontrei os pontos principais da história bem traduzidos aqui.
A personagem Ashley realmente destoou. Pretendo reassistir sob seu ponto de vista, e também pra reparar coisas como a diferença de andamento entre a primeira e a segunda parte.

B. de Campos disse...

Amigo, estou boquiaberta e estupefata com o seu texto... Fantástico! Genial, magistral... Sem palavras... Favoritei!!!

:)