sexta-feira, 25 de maio de 2007

A ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA

A última sessão de cinema (The last picture show, 1971)
Dirigido por Peter Bogdanovich
Por Flávio Brun

Um filme nostálgico, porém sem idolatrias a uma era, "A última sessão de cinema" mostra o dia-a-dia de uma cidadezinha no interior do Texas no começo dos anos 50, onde a última era de ouro do cinema americano dava seu último suspiro.

A história é basicamente um drama adolescente, dando ênfase a três jovens - Sonny, Duane e Jacy. Os adultos aparecem durante o filme, porém seus personagens são meros coadjuvantes, mas ainda assim vitais para o desenvolver da história - os principais são a mãe de Jacy, Sam o Leão e Ruth. Ao começo do filme, os três jovens são colegas de escola e Jacy e Duane são namorados, para a inveja de Sonny, que tem uma queda por Jacy, que por sua vez tem o namoro desaprovado por sua mãe, que acha que Duane é pobre e não merece sua filha. Sonny é o protegido de Sam, que é dono de todos os locais de lazer da cidade - o bar, salão de sinuca e cinema. A película cobre o período de aproximadamente um ano e meio da vida desses personagens em uma cidade vazia e monótona. O filme teria sido melhor se tivesse dado mais ênfase aos personagens secundários, cujos dramas não foram suficientemente trabalhados - principalmente Ruth, a esposa do treinador e a mãe de Jacy, infeliz no seu casamento de conveniência.

Um roteiro com adolescentes como protagonistas pode se tornar uma armadilha quanto ao rumo de seus personagens, sendo fácil desperdiçar um bom enredo para criar apenas mais uma comédia acéfala ou uma história apenas com drogas, sexo e rock 'n roll. Em "A última sessão de cinema" temos a presença de sexo em alta dose, porém apenas simbolizando o pensamento da era e o começo da liberdade sexual que veio a explodir uma década depois. Os jovens do filme têm alma, não sendo apenas um estereótipo de pessoas que apenas pensam com seus genitais. Em suas jornadas, acompanhamos suas frustrações, dramas pessoais e desejos, sendo possível nos identificarmos com esses personagens que não são apenas sombras projetadas em uma tela de cinema, e sim pessoas de carne e osso com problemas reais que toda pessoa normal tem.

O elenco do filme é composto por atores que hoje são conhecidos, porém aqui estão em seus primeiros papéis de destaque, e se saem muito bem em suas interpretações. Jacy é interpretada por Cybill Shepherd (mais conhecida por seu papel na minissérie "A gata e o rato" e no filme "Taxi driver"), em um papel difícil para uma atriz novata, pois Jacy é uma menina ousada e sem sentimentos pelos rapazes com quem sai. Ellen Burstin (a famosa mãe da menina possuída pelo demônio em "O exorcista) interpreta a mãe de Jacy e, apesar de não ganhar muito destaque, cumpre seu papel muito bem. Duane é interpretado por Jeff Bridges, sendo o elo mais fraco de um bom elenco.

A iniciativa de filmar o filme em tons de cinza (não preto-branco pois cinza é diferente de preto e branco!) foi uma decisão acertada, pois a falta de cores nos aumenta a sensação de desolação do lugar e das pessoas que lá vivem. Como não se trata de um filme onde a felicidade parece ter abandonado a vida da maioria dos personagens, cores não cairiam bem aqui. Além de ressaltar o clima do filme, todo o trabalho artístico envolvido na produção do filme atinge o objetivo de transportar-nos direto à década de 50, tornando crível a que essa produção de 1971 tenha sido feita vinte anos antes. As locações do filme utilizam de uma cidade pequena, vazia, quase deserta, o que amplia ainda mais a sensação de vazio na vida dos personagens.

O título "A última sessão de cinema" pouco tem a ver com a história de seus personagens, se referindo ao cinema que é forçado a fechar devido à crise que a indústria cinematográfica enfrentou com a popularização da televisão. As pessoas, na época, abandonaram o costume de ir ao cinema para fins de entretenimento e informação (antes dos filmes costumavam passar notícias) para ficar em casa pois o pensamento geral era "para que pagar se eu posso assistir de graça no conforto do meu sofá?".

Dois anos depois de seu lançamento, "A última sessão de cinema" viria a influenciar o jovem diretor George Lucas ao filmar "American Graffiti - Loucuras de verão", um filme sobre um grupo de amigos adolescentes que passam uma noite fazendo o que todo jovem sabe fazer - transar, beber e entrar em confusão. Apesar da diferença de abordagem dos jovens, a influência é clara - trazer à tona uma visão nostálgica de uma década que já passou usando a vida de adolescentes para explicitar o que foi perdido.

Um clássico exemplo de filme cujo tema é nostalgia, esse filme sucede aos demais do gênero por não tentar glorificar a era que já terminou e sim apenas apresentar a vida da época com realismo. Um ótimo retrato de um período que jamais será esquecido por amantes da arte de se fazer cinema e nem por amantes de uma época em que a vida era mais simples.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

OS 39 DEGRAUS

Os 39 Degraus (The 39 Steps, 1935)
Dirigido por Alfred Hitchcock
Por Matheus Mocelin Carvalho

Apesar de constantemente citado entre seus mais importantes trabalhos e certamente o mais popular filme de sua fase britânica, Os 39 Degraus não se tornou parte do consciente popular como as futuras produções de Alfred Hitchcock se tornariam. Tal fato não deve desmerecer a obra que, apesar de mostrar um diretor ainda em fase de amadurecimento, é capaz de se sustentar no cannon do mestre do suspense como um de seus grandes feitos.

Os 39 Degraus pode ser considerado o arquétipo do que viria a se tornar um tradicional filme de Hitchock, pois aqui somos apresentados a diversos temas que apareceriam constantemente em suas futuras obras: a história do “homem errado” perseguido por um crime que não cometeu; a figura da mulher loira fria, cínica e dominadora; e finamente, o uso do MacGuffin, um recurso narrativo utilizado para mover a história, mas que ao final revela possuir pouca importância. Os mais familiarizados com a filmografia do diretor poderão estabelecer uma conexão entre esta produção e filmes como Ladrão de Casaca, O Homem que Sabia Demais e, especialmente, Intriga Internacional de 1959. Podemos considerar Os 39 Degraus como o rascunho de uma obra de arte, que seria refinada e receberia os toques finais com o filme de 1959.

Em Os 39 Degraus somos apresentados ao canadense Richard Hannay (Rober Donat) que acaba tendo um encontro ao acaso com Anabelle Smith (Lucile Manheim), uma espiã que diz ter descoberto um plano que pretende levar informações secretas para fora da Inglaterra. Quando a moça é assassinada em seu apartamento, Richard acaba sendo acusado injustamente pelo crime e é obrigado a fugir para a Escócia, seguindo as pistas deixadas pela espiã. No país ele acaba caindo nas mãos da organização por trás do assassinato de Anabelle, e para escapar e desvendar o mistério ele conta com a ajuda da atraente Pamela (Madeleine Carroll). Sendo um filme de Hitchcock, diversas reviravoltas podem ser esperadas até o final, sendo que a revelação dos ditos 39 degraus acaba sendo a de menor importância (vide o MacGuffin).

Mesmo não apresentando o requinte técnico e visual de suas futuras produções americanas, Os 39 Degraus apresenta um diretor educado nas escolas cinematográficas alemãs e russas. Hitchcock já demonstra seu talento na composição de quadros, e sua edição já se mostra eficaz o bastante para criar emocionantes cenas de ação e suspense, valendo destacar uma perseguição ambientada em um trem que oferece uma prévia de momentos semelhantes em A Sombra de uma Dúvida e Intriga Internacional. Enquanto não apresentam um profundo estudo de psique, os personagens são iluminados por brilhantes momentos de diálogos. Podemos destacar as cenas guiadas por um humor cínico entre Robert Donat e Madeleine Carrol, tais sendo carregados de certa dose de tensão sexual – basta dizer que um ousado momento envolvendo algemas e meias-calça provavelmente não teria sido aprovado por censores americanos. O enredo em si não nos permite múltiplas interpretações como muitas das melhores obras do mestre (e se tantas comparações com seus demais filmes são feitas, é porque tais são inevitáveis), mas isso não altera o fato de que Os 39 Degraus foi um importante passo na carreira ascendente do então jovem Alfred Hitchcock, e provavelmente o primeiro filme que o fez ser notado internacionalmente. Mesmo não apresentando a mesma profundidade de outros de seus trabalhos, merece seu lugar entre os melhores filmes do diretor.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

O PECADO MORA AO LADO

O pecado mora ao lado (The seven year itch, 1955)
Dirigido por Billy Wilder
Por Flávio Brun

A simples menção do nome de Marylin Monroe na maioria das vezes traz à mente a imagem da atriz tentando evitar que seu vestido branco suba com o vento. O que muita gente não sabe é que essa cena icônica do cinema é parte de um pequeno filme chamado "O pecado mora ao lado", uma comédia do brilhante diretor e roteirista Billy Wilder.

Desde antes do descobrimento da América, habitantes de Manhattan possuem um costume: todo ano, com a chegada do verão, as esposas e as crianças viajam para algum lugar ao norte para escapar do calor escaldante, enquanto os homens ficam na cidade fazendo suas tarefas (pescar, montar armadilhas e caçar). Mais de 500 anos depois, os homens continuam com o mesmo costume, e "O pecado mora ao lado" conta a história de Richard Sherman, que ao invés de pescar, montar armadilhas e caçar enquanto a família está longe, trabalha como editor de uma publicadora. No seu primeiro dia sozinho, Sherman conhece a nova vizinha do andar de cima (Marilyn Monroe) - tornando o título em português errôneo, pois o pecado mora em cima, e não ao lado - e logo começa a sentir a coceira da tentação - o título original do filme seria "A coceira dos sete anos", se referindo a uma teoria do filme que os homens são mais propensos ao adultério no seu sétimo ano de casamento.

A imaginação de Sherman está além do escopo abrangido por "fértil". Como diz sua esposa no filme, sua imaginação é "em cinemascope e com som estereofônico". As cenas mais engraçadas e divertidas são, de longe, quando Sherman está imaginando uma realidade paralela à que ele está vivendo, como por exemplo quando ele imagina uma discussão com sua esposa sobre as várias em que ele resistiu a mulheres se jogando em cima dele devido ao seu "charme animal" (uma vez que Sherman pode ser qualquer coisa, menos atraente), ou quando ele imagina ser apanhado pela mulher com outra em seu apartamento. Ao longo do filme, em vários momentos há a menção de algum elemento da cultura pop da época - um exemplo disso é em uma das cenas de imaginação de Sherman, em que a famosa cena do casal na praia ao bater das ondas de "A um passo da eternidade" é reproduzida em uma das referências mais descaradas já apresentadas - e o filme em momentos se auto-referencia, como na cena em que Sherman grita com um vizinho "quem você acha que está na cozinha, Marilyn Monroe?" ou a cena em que a esposa descreve a imaginação dele (o filme foi, de fato, filmado em cinemascope e com som estereofônico).

O filme é uma adaptação da peça de teatro homônima, e Tom Ewell repete seu papel da peça no filme, como Sherman. Na maioria dos casos em que um ator/atriz faz no cinema um papel que o consagrou no teatro, a atuação no cinema é digna de louvor, e com Ewell não foi diferente. Sua capacidade de expressão é fantástica, tornando impossível não rir de suas neuroses, além de suas caras e bocas ao longo do filme. Marilyn Monroe faz o papel da vizinha sem nome, personificando mais uma vez o estereótipo de loira burra, o qual odiava. A ingenuidade da vizinha ajuda a manter críveis as fantasias de Sherman, mas ao mesmo tempo perde a credulidade da audiência com relação a própria personagem.

Em 1955, o filme causou furor por sua ousadia para a época, apesar de que, se analisarmos o filme com os olhos de hoje, não se encontra nada de mais, parecendo até bastante inocente comparando com as comédias atuais. Na época, os responsáveis pela censura queriam proibi-lo, por apresentar um tema polêmico (adultério) como algo banal, mesmo não havendo cenas de real adultério (com exceção de um ou dois beijinhos de Sherman com a vizinha). Outra coisa que chocou foi a sensualidade exibida na tela, com a personagem de Marilyn com o dedão do pé preso na banheira, e até mesmo a famosa cena do vestido sendo levantado pela corrente de ar vinda do trem.

Quando se comenta sobre a obra do diretor Billy Wilder, "O pecado mora ao lado" normalmente é um de seus filmes menos citados, e de forma injusta. É claro que comparar essa simples comédia com obras máximas de seu currículo (como o brilhante "Crepúsculo dos deuses") é injusto, e até pode passar desapercebido, porém considerando a polêmica e o sucesso do filme na época de seu lançamento, esse é um filme que não deve ser ignorado. O humor mordaz de Wilder está presente aqui, além das ótimas atuações por parte do elenco. Sempre desafiando a indústria do cinema, Billy Wilder travou uma batalha para poder realizar esse filme, porém muito do conteúdo teve que ser alterado ou até mesmo cortado - a cena clássica do vestido teve que ser editada para que não aparecesse a calcinha de Marilyn, por exemplo. O resultado foi uma deliciosa comédia com altos níveis de insinuação e muita sensualidade por parte de Marilyn.

Em mais uma obra-prima, Billy Wilder mostra em "O pecado mora ao lado" que uma boa comédia não é feita apenas de uma série de cenas estúpidas com adolescentes bêbados e piadas de sexo, algo que o cinema atual parece ter esquecido, e sim de um roteiro inteligente com piadas sutis, que não subestimam a capacidade intelectual dos espectadores. Para quem gosta de comédias, ao invés de assistir filmes como "Um show de vizinha" ou qualquer outro do gênero comédia-adolescente-sem-cérebro, dê uma chance a esse clássico. A falta de nudez pode fazer falta, mas a beleza natural de Marilyn Monroe compensa qualquer nudez. Além do mais, comédias são comédias, e não tentativas frustradas de filmes pornô.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

...E O VENTO LEVOU

...E o Vento Levou (Gone With the Wind, 1939)
Dirigido por Victor Fleming

Por Matheus Mocelin Carvalho

Restritos são os filmes que conseguem a façanha de tornarem-se lendas em seu próprio tempo. ...E o Vento Levou pode ser considerado um desses raros exemplos. Tido como uma das representações máximas de como um épico cinematográfico deve ser, o filme é provavelmente o maior representante da Era de Ouro de Hollywood. Uma produção que conseguiu estabelecer uma conexão com a platéia como poucos antes ou depois de si ao ponto de entrar para a cultura popular, com seus inúmeros relançamentos provando repetidamente sua enorme popularidade – de fato, se ajustarmos os números pela inflação, ...E o Vento Levou ocupa o posto de maior bilheteria de todos os tempos. O filme também aparece na quarta posição na lista do American Film Institute dos 100 melhores filmes americanos de todos os tempos.

A concepção de ...E o Vento Levou originou com o romance literário de Margaret Mitchell de mesmo nome publicado em 1936. Um fenômeno literário comparável ao recente sucesso de O Código Da Vinci de Dan Brown, o livro teve seus direitos cinematográficos adquiridos pelo produtor David O. Selznick pelo então exorbitante valor de $50,000 dólares. Mesmo em uma época onde a Internet estava há décadas no futuro, a produção era acompanhada de perto pela imprensa e público, com a busca de uma atriz para interpretar a destemida Scarlett O’Hara se tornando uma obsessão nacional (acredita-se que mais de 400 atrizes foram testadas para o papel). A atriz inglesa Vivien Leigh ganhou aquele que é provavelmente o mais famoso papel feminino da história, enquanto o papel de seu interesse amoroso, o capitão Rhett Butler, foi inevitavelmente para Clark Gable (vale notar que, apesar de aparecer em praticamente todas as cenas do filme, o nome de Leigh é creditado em segundo, atrás de Gable). Após uma conturbada produção que passou por três diretores diferentes (apesar de apenas Victor Fleming ser creditado), o filme foi lançado em 1939, se tornando uma febre mundial ainda maior que a do livro que o originou, e logo ultrapassando Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs, 1937) como a maior bilheteria de todos os tempos.

Seria fácil rebaixar ...E o Vento Levou como um melodrama manipulador, originário de uma série de elementos narrativos que se tornariam clichês em inúmeras outras produções dramáticas (como a telenovela). A verdade é que o filme foi produzido em uma época de diferentes percepções estéticas e culturais (tomamos em mente que esta é uma época prévia à linguagem cinematográfica moderna introduzida em Cidadão Kane), e para o público de 1939, esta era uma experiência como nenhuma outra vista anteriormente. O fato de que sua fórmula seria repetida à exaustão apenas comprova o quão inserido na cultura popular a obra se tornou. Outras superproduções tentaram repetir o mesmo ângulo de romance contra cenário histórico (como Doutor Jivago de David Lean e, a certo ponto, Titanic de James Cameron), com resultados nem sempre tão positivos.

A saga de Scarlett O’Hara e sua luta para subir na vida em meio à hostilidade da Guerra da Secessão atingiram um acorde em especial com as platéias de 1939. Ainda sofrendo os terríveis efeitos da Depressão, o público pôde identificar na protagonista sua própria imagem: alguém que vai à falência e chega ao mais profundo desespero, mas que não desiste de lutar apesar das maiores dificuldades. E é tal determinação que ajuda a tornar a tornar Scarlett uma das mais fascinantes e tridimensionais personagens na história do cinema. Provavelmente o maior exemplo de anti-heroína, eis uma mulher que é capaz de chegar a situações extremas para defender sua terra e sua família (como diz no seu apaixonado juramento, ela realmente “mente, rouba, trapaceia e mata”). Educada como uma típica “beldade do sul”, Scarlett é uma jovem mimada e manipuladora que não se conforma quando suas vontades não são atendidas. Seu suposto amor por Ashley Wilkes, por exemplo, se revela ser nada mais do que a ilusão da mente de uma garota por algo que nunca existiu de verdade e um capricho por querer algo que ela não pode ter. A ambígua personalidade de Scarlett é demonstrada em diversas situações ao longo do filme: ela é capaz de ajudar e proteger Melanie (ainda que por dívida a Ashley), mas também é capaz de ser mesquinha e interesseira, chegando a se casar três vezes, sendo que nenhuma por amor verdadeiro. Tal ambigüidade ajuda a tornar a personagem real diante dos olhos do espectador, a afastando das tradicionais perfeitas e imaculadas heroínas.

No papel que mais marcou a carreira de ouro de Clark Gable (e cujo Oscar ele inexplicavelmente perdeu, alguns acreditam que pelo fato de Gable estar interpretando ele mesmo), Rhett Butler é a versão masculina de Scarlett. Ambos são personagens teimosos, autônomos e destemidos, que lutam para sobreviver a seu próprio modo. Talvez por serem tão semelhantes, o casal vive uma relação tempestuosa ao longo do filme, relação esta que é selada com uma das mais célebres frases do cinema. Ainda assim, Rhett se revela uma melhor pessoa do que Scarlett: quando os dois têm uma filha, o capitão se mostra um pai carinhoso e amoroso, enquanto as maiores preocupações dela se referem ao tamanho de seu espartilho. Diversas são as suas tentativas de se aproximar de Scarlett e, quando ela percebe que realmente o ama, já é demasiadamente tarde.

Com personalidades tão definidas, Scarlett O’Hara e Rhett Butler formam um dos mais peculiares casais das telas, podendo ser considerados a antítese de um tradicional par romântico. Enquanto os diálogos de Scarlett e Ashley são exageradamente literários e melodramáticos, as cenas entre o casal interpretado por Leigh e Gable são carregadas de acidez e ironia. Tomemos por exemplo a cena na qual Butler pede a mão de O’Hara em casamento. Uma ocasião que em um filme tradicional poderia ser o momento mais romântico da película, aqui é encenada com uma viúva bêbada que acaba de enterrar o marido e um pretendente que propõe um casamento “apenas por diversão”. Os dois se casam por maior questão de conveniência do que sentimento real: Rhett pelo desejo que nutre por Scarlett e ela pelo seu dinheiro. É dito que Leigh e Gable não tinham uma boa relação no set, mas o que vemos na tela é uma perfeita química entre a dupla, chegando a gerar certa dose de erotismo um tanto ousada para a época (“Ele me olha como se soubesse como fico sem roupas” ela diz ao trocar olhares pela primeira vez com o capitão). Em uma das mais polêmicas cenas do filme, Rhett força Scarlett a ter uma noite de sexo com ele após meses de negação. No dia seguinte, a expressão de satisfação no rosto dela não consegue esconder o prazer sentido na noite anterior.

Os outros dois co-astros do filme, Leslie Howard e Olivia de Havilland, interpretam o casal Ashley Wilkes e Melanie Hamilton. Representando a imagem oposta de Scarlett e Rhett, Melanie é a única personagem realmente boa no filme, se importando com todos acima de si mesma, enquanto Ashley é um homem cujos princípios de honra o impedem de assumir uma relação com Scarlett, mas que se revela ser uma pessoa fraca que vive no passado. Infelizmente, é justamente no papel de Ashley que o filme apresenta uma de suas maiores falhas, tendo início com a escalação do ator. Leslie Howard, na época com quarenta e três anos de idade, não apenas era muito velho para interpretar alguém que deve contracenar com duas atrizes com pouco mais de vinte anos, mas também aparenta estar desconfortável no papel. Acaba tornando-se difícil para o público entender a fixação de Scarlett por Ashley, especialmente quando o roteiro dá ao personagem alguns dos mais fracos diálogos do filme (demasiadamente fabricados e românticos, se analisarmos com uma visão moderna).

Famoso por seus excessos, ...E o Vento Levou faz jus ao seu rótulo de épico, tanto em escala quanto em duração. Sidney Howard, ao lado outros roteiristas não creditados, faz um competente trabalho na adaptação do romance com mais de mil páginas de Margaret Mitchell para as telas. Com quase quatro horas de duração (incluindo introdução e intervalo), é um esforço admirável que a atenção do espectador seja capturada até os últimos instantes do filme. Alguns problemas podem ser encontrados na segunda parte da obra, quando a narrativa se torna mais episódica e menos movimentada, mas ainda assim somos brindados com momentos de diálogos muito bem escritos e com reviravoltas o bastante para carregar o filme até seu derradeiro final. Enquanto é verdade que algumas cenas poderiam ter sido diminuídas ou totalmente excluídas, e que a parada de tragédias que atinge os personagens nos últimos minutos pode parecer excessiva, a longa duração contribui para a sensação final de que ...E o Vento Levou é realmente uma poderosa experiência.

Há alguns elementos que não envelheceram tão bem aos olhos de nossa sociedade politicamente correta, a principal delas sendo a representação dos afro-americanos. Alguns criticam o filme por mostrar personagens negros estereotipados, e escravos que se mostram felizes por trabalharem para seus mestres brancos. Um fato que pode passar negligenciado é que Mammy (na atuação de Hattie McDaniel que lhe rendeu o Oscar) é uma das personagens mais sensatas do filme, constantemente repreendendo as canalhices de Scarlett e sendo muito querida pelos demais personagens. Algo a considerar é que ...E o Vento Levou foi produzido em uma época com sensibilidades diferentes, e seria errado julgá-lo com olhos atuais. Como disse Roger Ebert em seu livro Great Movies, “um ...E o Vento Levou politicamente correto não valeria a pena ser feito, e poderia enormemente ser uma mentira.”

Independente de deficiências históricas e narrativas, é inegável que estamos falando de um dos filmes mais cuidadosamente produzidos da história. Desde os créditos iniciais onde os títulos se arrastam pela tela acompanhados da épica trilha sonora de Max Steiner, o espectador pode ter a certeza de que está na presença de algo verdadeiramente grande. Na época de seu lançamento, ...E o Vento Levou elevou a arte dos independentes departamentos do cinema ao máximo do que podia ser alcançado. Apresentando uma visão romântica do Velho Sul, o filme é extremamente detalhista em seus grandiosos cenários repletos de figurantes e seus belos figurinos. Um meticuloso estudo de mise em scène revela composições que variam da simples beleza efetiva de um close dos atores a ousados e grandiosos planos abertos. A marcante cena em que Scarlett parte em busca do Dr. Meade em um grande campo aberto, por exemplo, tem início com um plano fechado no rosto de Vivien Leigh reagindo ao que vê a sua frente. Aos poucos o plano é aberto em travelling para revelar uma interminável fila de corpos de soldados mortos e feridos dispostos ao chão, enquanto a câmera se afasta o bastante para revelar a bandeira dos confederados balançando alto contra o vento. As belíssimas pinturas mate (matte paitings) de Jack Cosgrove preenchem cenários e paisagens inexistentes, criando impressionantes visões como as vastas terras das plantações de Tara.

Um elemento que não passa despercebido aos olhos é o marcante uso do Technicolor no filme. ...E o Vento Levou foi o primeiro filme colorido a ganhar o Oscar de Melhor Filme, e também é uma das primeiras obras cinematográficas a mostrar uma preocupação em utilizar as cores para obter um efeito psicológico no espectador. Marcantes são as cenas em que os personagens são destacados em silhueta contra vastos céus avermelhados, estas que contrastam com os frios azuis que acompanham a volta de Scarlett na estrada à sua Tara destruída. O vermelho se faz presente em momentos chave da relação entre Rhett e Scarlett, acentuando o misto de paixão e fúria de seu relacionamento: no céu do crepúsculo durante a cena onde os dois se beijam na ponte após a fuga de Atlanta; na grande escadaria onde Scarlett sofre seu acidente e onde Rhett a leva para o quarto à força. Esta última cena em especial demonstra o virtuosismo técnico e o casamento perfeito entre os departamentos de figurino, fotografia e direção de arte. Não bastasse a natureza polêmica da cena, seu staging faz o uso dramático de sombras e da iluminação oriunda de castiçais e de um enorme lustre que paira sobre a grande escadaria. O vermelho das escadas casa com o vermelho do vestido de Scarlett e, quando Rhett a carrega no colo degraus acima, os dois somem em meio à penumbra.

Talvez uma das chaves para se apreciar ...E o Vento Levou corretamente é se desarmar de maiores preconceitos e aceita-lo como um produto de sua época: uma grande saga sobre pessoas apaixonadas em tempos de guerra como apenas Hollywood sabia fazer. Independente de alguns elementos datados, o filme não perdeu seu poder e a capacidade de prender aos que se renderem à sua dramaticidade. Assim como Scarlett na cena final do filme, indestrutível e incapaz de se render, ...E o Vento Levou continua a se firmar como um dos grandes marcos na história do cinema.

segunda-feira, 14 de maio de 2007

CASSINO

Cassino (Casino, 1995)
Dirigido por Martin Scorsese
Por Flávio Brun

No começo dos anos 90, o diretor Martin Scorsese já havia se firmado como um dos melhores diretores americanos, com uma filmografia de dar inveja. Em 1976, Scorsese fez seu impactante "Taxi driver", uma fábula sobre a noite em uma Nova York suja e violenta. Em 1980, o diretor fez o filme que muitos consideram sua obra-prima, "Touro indomável", um drama intimista sobre a carreira de um lutador de boxe. Dez anos mais tarde, seu "Os bons companheiros" se tornou um dos melhores filmes de máfia já feitos. Em 1995, "Cassino" começa a mostrar sinais de falta de originalidade por parte do diretor.

Las Vegas é um mundo à parte. Escondida no meio do deserto de Nevada, a capital mundial do jogo é o cenário para "Cassino", uma história de máfia, dinheiro e traição, baseada em uma história real. Para interpretar essa história, Robert de Niro faz o papel de Sam Rothstein, um homem que sabe tudo sobre todo tipo de jogo, e que se torna responsável pelo Tangiers, o cassino ao qual o título do filme se refere. Seu amigo de infância Nicky Santoro (interpretado por Joe Pesci), assim como Sam, trabalha para a máfia e após algum tempo se torna uma das pessoas mais procuradas pela polícia - conseqüência de seus métodos de se negociar e seu temperamento psicótico. Sam se apaixona por Ginger (Sharon Stone), a clássica mulher interesseira, cujo único real interesse na vida é ter mais e mais dinheiro (e gastá-lo, é claro).

O único reconhecimento que o filme teve nas premiações do Oscar de 1995 foi a indicação de Sharon Stone ao prêmio de melhor atriz coadjuvante, o que foi merecido, apesar da personagem interpretada pela atriz ser totalmente descontrolada na segunda metade do filme. O fato de ninguém mais no elenco ter recebido atenção da academia, e o filme em si também ter sido negligenciado no restante da premiação foi injustiça, principalmente se lembrarmos que o ano de 1995 foi extremamente fraco em matéria cinematográfica - os melhores filmes daquele ano eram "Se7en" e "Cassino". Robert de Niro, figurinha carimbada nos filmes de Scorsese (ele está presente em quase todos os melhores filmes do diretor), faz uma boa interpretação como Sam - sutil e competente. O elo fraco do elenco é Joe Pesci - que muitos consideram um dos melhores do filme. Pesci faz de Nicky uma pessoa extremamente psicótica e sem noção de limites, o que após um ponto chega a ser difícil de aceitar e torna-se irritante.

O filme é povoado por características típicas de vários filmes de Scorsese: narração não linear (que aqui acabou se tornando um pouco confusa), edição ágil (sempre feita pela competente Thelma Schoonmaker), uma bela fotografia, com cores bem saturadas e trilha sonora com músicas populares que se encaixam perfeitamente no contexto das cenas. Os créditos iniciais, feitos pelo mesmo grupo que fez os créditos de abertura inesquecíveis de "Psicose", "Um corpo que cai" e muitos outros, são hipnotizantes, logo após a explosão do carro e com Robert de Niro voando pelas chamas ao som de música clássica. Tecnicamente falando, não há do que reclamar do filme.

A falta de originalidade de "Cassino" se deve ao fato de que Scorsese decidiu não arriscar em criar algo novo e o filme todo parece uma junção de fórmulas já usadas em seus filmes anteriores apenas com uma roupagem nova. As semelhanças de "Cassino" com "Os bons companheiros" são inegáveis: ambos os filmes começam com algum acontecimento pivô da história, e depois vemos o que acontece antes disso. O tipo de trilha sonora usado também é extremamente semelhante ao usado no filme predecessor, assim como boa parte do elenco - coadjuvantes e principais - também estavam em "Os bons companheiros". O estilo do filme (fotografia, musica, edição) é semelhante também, principalmente o uso da narração por vários personagens comentando os acontecimentos que se passam na tela. Assim como "Os bons companheiros", o roteiro de "Cassino" também é adaptado de um livro de Nicholas Pileggi. A impressão que dá ao fim da película é uma sensação de déjà vu, em um bom filme, porém em uma tentativa de repetir o sucesso que, de certa forma, saiu pela culatra.

Embora a famosa fórmula máfia-ascenção-poder-fracasso já ter sido usada à exaustão, "Cassino" consegue usar isso de forma eficiente e oferece três horas de entretenimento (embora seja questionável considerar como entretenimento um homem ser esfaqueado com uma caneta). O que prejudica o filme é a dificuldade de se analisar o filme isoladamente do resto da filmografia de seu diretor, mas ignorando-se o resto da obra de Scorsese, esta é uma obra-prima. "Cassino" pode ser considerado uma cópia de carbono de "Os bons companheiros", mas levando em conta que o objeto copiado era material de qualidade, a cópia ainda assim é superior à maioria dos filmes lançados na telona.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

CARROS

Carros (Cars, 2006)
Dirigido por John Lasseter
Por Matheus Mocelin Carvalho

O ano de 2006 constatou a realização de uma previsão feita por analistas e fãs desde o início da década: a saturação do mercado de animação. Devido aos imensos sucessos dos filmes da Pixar e o fenômeno de certo ogro verde, diversos estúdios colocaram em produção uma série de animados digitais, esperando receberem sua fatia de lucros. Tal foi o interesse que o ano finalizou com mais de dezesseis produções animadas tendo estreado apenas nos EUA, com a grande maioria tendo desempenho muito abaixo das expectativas. Esta grande exposição casou efeito reverso no público, que deixou de considerar animação algo especial, sendo também necessário mencionar que muitos destes filmes seguem a semelhante fórmula de comédia com tiradas pop estreladas por animais. No meio deste ano conturbado, chega Carros, a primeira produção lançada após a compra da Pixar pela Disney. Oferecendo uma opção diferente dos animais falantes e ainda tendo como vantagem “dos criadores de Toy Story e Os Incríveis” nos cartazes, o filme conseguiu se destacar dos demais, ainda que não da forma como muitos esperavam. Mesmo lucrando $244 milhões nos EUA e se tornando a segunda maior bilheteria norte-americana de 2006, os resultados ficaram abaixo das últimas produções do estúdio, o que levaram ao início das pífias especulações a respeito da trilha de sucessos da Pixar (tal situação remete ao ano do lançamento de Pocahontas).

Carros nos introduz ao protagonista Lightning McQueen (voz de Owen Wilson), um arrogante carro de corridas que cruza o país para competir na Copa do Pistão na Califórnia. Quando um desvio de percurso acidental o faz se perder do seu caminho, ele acaba parando na pacata e abandonada cidade de Radiator Springs. Preso no lugar por infrações cometidas, ele se vê obrigado a conviver com figuras como o misterioso Doc Hudson (voz do ótimo Paul Newman), a adorável porshe Sally e um velho reboque chamado Mate (Larry the Cable Guy). O filme segue as relações de Lightning com o restante dos personagens, sendo que tudo leva à inevitável corrida ao final.

Talvez o principal problema de Carros seja o fato de ter sido lançado após uma onda de seis grandes sucessos, o que torna a comparação inevitável. E infelizmente, ainda que muito bom por seus próprios méritos, não chega ao nível de excelência de produções passadas da Pixar. Um dos principais aspectos negativos é a falta da naturalidade com que o desenrolar narrativo e as relações entre os personagens fluem, sendo que muitas vezes podemos ver as “engrenagens girando” – ou seja, é possível perceber a manipulação da narrativa para ir de ponto A ao ponto B. Isto também é prejudicado pelo fato de o arco do personagem Lightning McQueen já ter sido visto diversas outras vezes no cinema (personagem falho deve passar por mudanças ao se encontrar na companhia de outros que não lhe agradam). Apesar de coloridos e interessantes, boa parte do restante do elenco do filme não passa de estereótipos já mostrados em diversos outros filmes de animação, como o caipira gente boa e o sargento rabugento.

A maior diferença entre Carros e as produções anteriores da Pixar é sua escolha de elenco – ou, devemos dizer espécie. Enquanto nos filmes anteriores os cineastas conseguiram a façanha de fazer o espectador se envolver emocionalmente com brinquedos, insetos, monstros e peixes, de certa forma o mesmo efeito não é alcançado com carros. Talvez seja neste ponto no qual muitos amantes das máquinas irão discordar, mas torna-se mais complexo estabelecer uma conexão com um mundo em que todos os personagens são feitos de lata e andam sobre quatro rodas. Além disso, podemos nos questionar a respeito da verossimilhança de um universo que é povoado exclusivamente por carros, mas que tem a mesma aparência do nosso. Em um mundo povoado apenas por máquinas dotadas de rodas e desprovidas de braços, é possível ponderar como todo o ambiente ao redor dos personagens foi construído. Talvez o espectador não devesse pensar sobre tais fatos em um filme de fantasia mas, como diria Walt Disney, para ocorrer a suspensão de descrença é necessária a ilusão do impossível plausível.

Independente de tais falhas, o pessoal da Pixar ainda não esqueceu como fazer um filme envolvente, e desta forma não podemos negar que Carros é um saudável entretenimento que conquista o espectador pelo seu charme. John Lesseter conseguiu inserir no filme um verdadeiro espírito de camaradagem e nostalgia que permeia por entre os vagantes da Rota 66, criando um afiado contraste entre o mundo moderno e apressado das pistas de corrida. Isso não significa que a produção seja uma crítica aos tempos mais atuais, mas sim uma ode às épocas passadas onde relacionamentos eram menos complicados e a vida era mais simples. Em uma das melhores passagens de Carros, vemos uma montagem que ilustra os tempos áureos e a derrocada de Radiator Springs com a construção da interestadual. Em outra cena vemos a pequena cidade voltar aos seus anos prósperos, regada a uma trilha dos anos cinqüenta e jovens (carros) que não resistem ao hábito de cruising. Um paralelo entre o passado e o presente pode ser estendido até mesmo com os atuais tempos da animação, onde lápis é pincel são jogados de lado a favor de mouse e teclado.

Mesmo não apresentando grandes inovações como os pelos que se movem de Sulley ou a animação humana dos Incríveis, Carros é tecnicamente impecável. As cenas ambientadas no interior surpreendem por seu foto realismo, sendo que alguns planos abertos parecem ter saído de um western de John Ford. Também vale citar o criativo design dos personagens, que fogem da tentação de utilizar os faróis como olhos e que possuem personalidade própria, apesar de suas limitações.

Apesar de não se sustentar tão bem quando inspecionado categoricamente, Carros é um filme cujo total funciona melhor que a soma de suas partes. De certa forma, podemos dizer que o slogan dos cartazes funciona para o próprio animado: “o que importa não é o destino, mas sim o percurso”. E no estado atual da animação, qualquer produção que se preocupa com o interior de seus personagens e não seja apenas uma colagem de referências pop e de sucessivas piadas de humor de banheiro já é algo a celebrar.

quarta-feira, 9 de maio de 2007

MAGNÓLIA

Magnólia (Magnolia, 1999)
Dirigido por Paul Thomas Anderson
Por Flávio Brun

Stanley entra em um estúdio de televisão acompanhado de seu pai, e acompanhamos os dois até que Stanley e seu pai se separam. Continuamos seguindo o pai de Stanley, que conversa com os pais de outras crianças que também estão no estúdio. Saindo da sala onde o pai de Stanley está, percorremos corredores até encontrarmos Stanley novamente, entramos em um elevador, saimos e encontramos Mary, a assistente de Jimmy Gator no corredor e começamos a segui-la. Em um filme comum, essa cena seria dividida em inúmeros cortes. Em "Magnólia", isso tudo é feito em apenas uma tomada.

Após o enorme sucesso de crítica e aceitação do público de "Boogie nights - prazer sem limites", o escritor e diretor Paul Thomas Anderson resolveu não perder tempo e começar um novo projeto. O resultado seria "Magnólia", um filme sobre as coincidências que ocorrem em nosso cotidiano sem sequer nos darmos conta. Uma história sobre família, relações destruídas e reconciliações.

No começo do filme somos apresentados a três histórias consideradas lendas urbanas nos Estados Unidos que demonstram como coincidências acontecem a todo o tempo: um homem assassinado por homens cujos sobrenomes formam o nome da cidade onde ele morava; um mergulhador encontrado morto em cima de uma árvore; um rapaz que tenta suicídio e é acidentalmente assassinado pela mãe. As histórias podem parecer forçadas, mas o objetivo é ilustrar que coincidências acontecem sim, e com maior freqüência que se imagina.

A história gira em torno de 9 personagens principais: Frank T. J. Mackey é um guru do sexo e tem um curso de sedução para homens e é filho de Earl Partridge, um velho produtor de programas de TV, com câncer e à beira da morte, cuidado por seu enfermeiro Phil Parma. Linda Partridge é a esposa de Earl, que casou com o velho apenas para receber a bolada após a morte do esposo, mas ao cuidar dele ela sente culpa e se arrepende do que fez. Jimmy Gator é o apresentador do programa de TV "O que as crianças sabem", em que adultos competem com crianças para ver quem sabe mais. Stanley Spector é o menino gênio que está há semanas no programa, sem errar uma, e a duas semanas de bater o recorde estabelecido por Donnie Smith, que tornou-se um perdedor ao crescer. Jim Curring é um policial da polícia de Los Angeles, que acaba conhecendo (e se apaixonando) por Claudia, a filha de Jimmy Gator. O filme percorre a trajetória desses personagens ao longo de um dia, mostrando de forma sutil as intersecções nas vidas dessas pessoas.

Filmes em geral não costumam ter mais de 3 narrativas simultâneas, e mesmo assim é costumeiro encontrar um que perde o fio da meada em algum ponto. "Magnólia" possui nove e em momento algum o filme perde o ritmo ou negligencia um personagem ou outro. Isso se deve ao roteiro genial de P. T. Anderson, que já havia experimentado acompanhar histórias de vários personagens em um único filme em "Boogie nights", porém em "Boogie" a história girava em torno de um personagem. Em "Magnólia" nenhum personagem é considerado principal, todos têm sua voz e seu tempo em tela suficiente para nos apegarmos a eles e sempre estarmos ansiosos para ver o rumo que suas vidas vão tomar.

O grande forte do filme, além de seu roteiro incrivelmente bem escrito, são as atuações de todo o elenco. É difícil encontrar um filme em que TODOS os membros oferecem atuações do calibre que encontramos em "Magnólia". Os destaques são Tom Cruise, como Frank T. J. Mackey e Juliane Moore como Linda. Cruise interpreta com excelência todas as variações de seu personagem, de um simples machista arrogante a um filho que não consegue perdoar mágoas passadas. A personagem de Juliane Moore é a única que tem algum problema de desenvolvimento na história - desde o começo ela já está desesperada sem saber o que fazer. Mesmo com a limitação da personagem, Moore oferece uma interpretação digna de reverência, e nos provém de algumas das cenas de maior impacto dramático da película.

O filme em aspectos técnicos é um espetáculo à parte. Uma das características dos filmes de Anderson é o grande número de enormes planos-seqüência (cenas longas sem cortes, como a descrita no parágrafo inicial que dura cerca de 3 minutos), e em "Magnólia" temos bons exemplos disso. As narrativas entrecaladas, unidas apenas pela mesma trilha de fundo, são um exemplo de edição. A trilha sonora, composta por várias músicas de Aimeé Mann (amiga do diretor, que escreveu o filme pensando nas músicas) dão um toque final a esse belíssimo trabalho artístico.

O modo de contar histórias paralelas entrecaladas tem sido largamente copiado nos últimos anos, com destaque a "Crash - no limite" e "Babel". Ambos os filmes tratam de como as coincidências do cotidiano afetam a vida das pessoas, e as conseqüências que o ato de um pode desempenhar na vida de vários. O impressionante é perceber que os dois exemplos citados acima são inferiores tanto em contúdo quanto em técnica, e mesmo assim obtiveram melhor recepção de público e crítica.

Apesar de pouco reconhecido, "Magnólia" é um dos melhores filmes dos anos 90, fruto da mente fértil de um talentoso roteirista e diretor. Provavelmente lembrado apenas por seu final, que merece uma análise à parte (e por isso nem foi mencionado aqui), "Magnólia" é muito mais que isso - é um filme que todos poderão se identificar com pelo menos um dos personagens e que mostra que filmes ainda podem surpreender quem os assiste.

domingo, 6 de maio de 2007

HOMEM-ARANHA 3

Homem-Aranha 3 (Spider-Man 3, 2007)
Dirigido por Sam Raimi
Por Matheus Mocelin Carvalho

O que começou como um gênero composto basicamente de filmes camp nos anos 60 evoluiu em um filão de filmes arrasa quarteirão, onde seus personagens principais são emocionalmente atormentados e cuja profissão traz maiores cicatrizes do que glória. Estamos falando do gênero super-herói, cujas adaptações cinematográficas rendem milhões aos estúdios desde Superman em 1978. É interessante observar a evolução do gênero, pois, transcendendo sua categoria de filme pipoca, cada vez mais os diretores têm criado heróis de personalidade tridimensional, mostrando que pode ser um grande fardo ter superpoderes em um mundo caótico. Em 2002, a Columbia acertou em cheio ao transpor o Homem-Aranha para as telas, e o público imediatamente estabeleceu uma conexão com o fracote Peter Parker que era apaixonado por sua amiga de infância. “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades” já dizia o tio Ben, e em Hollywood isso significa “com grandes bilheterias vêm grandes seqüências”.

Em contrapartida aos filmes anteriores, no início de Homem-Aranha 3 tudo está bem na vida de Peter Parker (Tobey Maguire): não só o Homem-Aranha é adorado pelo público de Nova York, o rapaz também conseguiu mediar sua vida como super-herói e como estudante e ainda encontrar tempo para dar atenção à sua namorada Mary Jane (Kirsten Dunst). Esta, por sua vez, continua com sua carreira de atriz, fazendo sua estréia em um musical na Broadway. Infelizmente os bons tempos não duram muito: seu antigo amigo Harry Osborn (James Franco) logo aparece na forma do Novo Duende para vingar a morte de seu pai (o Duende Verde do primeiro filme) ao mesmo tempo em que Flint Marko (Thomas Haden Church), o homem que matou o tio de Peter, foge da polícia e acaba sofrendo um acidente que o transforma no vilão Homem de Areia. Já no Daily Buggle, um novo fotógrafo chamado Eddie Brock (Topher Grace) tenta tomar seu emprego. Além disso, uma estranha substância negra vinda do espaço adere à sua roupa, lhe causando certas mudanças no comportamento.

Com tantos enredos paralelos, é admirável que Homem-Aranha 3 não tenha resultado em uma obra conturbada e turbulenta, o que não signifique que a produção ainda não apresente sua dose de problemas. Na tentativa de manter o filme coeso e amarrado, Sam Raimi e seus roteiristas Ivan Raimi e Alvin Sargent apelam para alguns artifícios que acabam tornando a narrativa mais artificial e menos verossímil. O roteiro utiliza de forma exagerada o formato de causa e conseqüência tão comum na narrativa clássica americana, onde um evento leva a outro e assim subseqüentemente. Deste modo, o espectador é obrigado a crer por três ou quatro vezes durante o filme em uma série de coincidências nas quais os personagens sempre se encontram no lugar errado e na hora errada. Homem-Aranha 3 também introduz muitos elementos novos e tenta amarrá-los com outros já previamente desenvolvidos. O principal caso é a aparição do vilão Flint Marko que, graças a uma descarada manipulação dos roteiristas, se tornou o assassino do tio Ben dando uma perspectiva diferente aos acontecimentos do primeiro filme. O desejo de amarrar todas as pontas (este filme tem mesmo o sabor de encerramento) gera um dos momentos mais duvidosos do filme, onde um mordomo é instituído da função de esclarecer fatos importantes da história.

Assim como Batman: O Retorno e Superman II¸ Homem-Aranha 3 apresenta a maior galeria de vilões da série. Não bastassem Harry e o Homem de Areia, o aracnídeo ainda tem que lidar com seu próprio comportamento agressivo causado pelo simbionte vindo do espaço e que, não será nenhum spoiler revelar, irá se tornar o vilão Venom. A conveniente solução para trabalhar com os três vilões foi se livrar de um deles no início (de certa forma) e deixar para introduzir outro apenas no terceiro ato. Apesar de esta ser uma adaptação dos quadrinhos, um homem feito de areia requer maior suspensão de descrença do que um homem vestido de duende que voa em um planador ou um homem com tentáculos de metal. Os efeitos especiais ajudam a criar um vilão impressionante tecnicamente e Church é um competente ator, mas os motivos para seus atos são um tanto superficiais. Com tantas histórias paralelas, alguns dos personagens ficam um pouco apagados. Gwen Stacy (Bryce Dallas Howard), o novo flerte de Peter, tem pouca função na história a não ser uma pedra no caminho de Mary Jane, enquanto a tia May (a ótima Rosemary Harris) apenas tem a função de oferecer seus conselhos e filosofias ao sobrinho, não tendo o mesmo papel ativo que teve no segundo filme.

Mesmo entre tantas batalhas, externas e internas, é louvável que o filme consiga reservar boa parte de sua duração para explorar a relação entre Peter e Mary Jane. O grande diferencial do filme é que MJ agora conhece a identidade secreta do herói, trazendo à mesa uma série de novas implicações. Em séries como a do Batman e de Superman, um elemento recorrente é o herói tentando esconder da mocinha sua verdadeira identidade em diversas situações. Em Homem-Aranha 3, o fato de Mary Jane estar ciente do alter-ego do companheiro dá nova dimensão à relação do par: além de ter de lidar com duas personalidades diferentes, ela também precisa suportar ver o sucesso de Peter enquanto sua carreira profissional desaba. A oportunidade é propícia para Kirsten Dunst mostrar seu amadurecimento como atriz e apresentar a melhor atuação do filme. As cenas entre os dois proporcionam alguns dos melhores momentos da película, estando livre das convenções narrativas que limitam diversos filmes de super-herói. Outro conflito de personalidades é a tão comentada batalha de Peter com ele mesmo. Sob o efeito do simbionte, ele adota um novo vestuário preto (tanto como Aranha quanto Peter) e um novo penteado que rendem inevitáveis comparações ao movimento emo. Mais agressivo e arrogante, o vemos sair às ruas de Nova York no melhor estilo John Travolta em Os Embalos de Sábado à Noite, em uma cena que atua como o oposto da seqüência “The Raindrops Keep Falling on My Head” do segundo filme (ainda que não exatamente com o mesmo efeito). Tobey Maguire parece se divertir interpretando a versão má de seu personagem, podendo fugir um pouco de sua habitual expressão de menino desamparado.

Não podemos esquecer que Homem-Aranha 3 é um dos grandes blockbusters do ano e que seu inflado orçamento de $250 milhões não foi gasto apenas em cenas de desenvolvimento de personagens. Ainda que em aparente menor quantidade devido à maior duração do filme (que acaba sendo algo positivo), as cenas de ação devem agradar aqueles que esperam ir ao cinema vibrar com o aracnídeo em ação. O dinheiro gasto aparece na tela e os efeitos especiais não desapontam – ainda que, como já ficamos tão acostumados (ou poderíamos dizer mimados) com as proezas do computador, cada vez mais se torna difícil ficar realmente impressionado com eles. A maioria das cenas de ação envolve pancadaria em queda livre, algo que acaba se tornando cansativo após a terceira ou quarta vez. O filme também faz uso do gasto artifício do momento deus ex machina, onde um personagem é salvo por outro na última hora. Curiosamente, a cena de ação mais efetiva do filme é um combate mano a mano entre Peter e Harry, cujo auxílio de efeitos especiais é mínimo.

Com Homem-Aranha 2, Sam Raimi criou o que muitos consideram o melhor filme de super-heróis já feito, conferindo uma grande responsabilidade ao terceiro episódio da série. Se Aranha 3 não consegue suprir todas as expectativas, ainda assim é um filme superior a qualquer aventura do X-Men e milhas a frente das bobagens de O Quarteto Fantástico. Com seus problemas narrativos, o filme talvez não se sustente tão bem quando analisado tão detalhadamente, mas o resultado final é outra adição de valor à saga do aracnídeo. Enquanto seus produtores não esquecerem que não foi a ênfase em efeitos especiais e sim o carisma do personagem e sua proximidade com o público que renderam tamanho sucesso à série, sempre será bom ter o velho amigo da vizinhança por perto.

quinta-feira, 3 de maio de 2007

HOMEM-ARANHA 3

Homem-aranha 3 (Spider-man 3, 2007)
Dirigido por Sam Raimi
Por Flávio Brun

Diferentemente da maioria dos filmes de super heróis, a franquia dos filmes do aracnídeo se destaca por apresentar um herói que não é feito de aço e que tem problemas externos ao mundinho de vilões que querem dominar o mundo. Nesse terceiro filme da série, nosso herói volta para para proteger Nova York novamente, e também para lutar contra seus demônios internos.

A história desse terceiro capítulo da saga continua onde o segundo parou - para quem lembra, o final de "Homem-aranha 2" era extremamente aberto e pedia uma continuação. Peter Parker e Mary Jane Watson estão namorando, Peter e seu amigo Harry não estão se falando por causa de maus-entendidos do passado, e Nova York está em paz, sem vilões para atrapalhar a vida de todos. Pela primeira vez na vida de Parker as coisas estão indo certo, até que surgir Eddie Brock, um fotógrafo que tenta ocupar sua posição no trabalho. Parker também descobre que o homem que matou seu tio no primeiro filme está vivo e à solta, e causando problemas. Logicamente os desafetos do aracnídeo se tornarão os vilões que proporcionarão as ótimas cenas de ação características da série. Para tornar a galeria de problemas do herói mascarado, temos uma substância negra vinda do espaço, cujos efeitos não são agradáveis.

Como já mencionado anteriormente, a franquia do homem-aranha se destaca por possuir um enredo firme, e não apenas uma série de cenas de ação mal conectadas. Em "Homem-aranha 3" temos o filme com mais cenas de desenvolvimento de personagem da trilogia, e isso em geral é um ponto positivo. O maior problema com o roteiro foi a inserção de Flint Marko, o responsável pela morte do tio de Parker. Aparentemente a única função desse personagem no contexto da história foi permitir que Parker liberasse seu lado negro, e para o que o herói tivesse mais um inimigo e proporcionar mais cenas de ação. Os personagens secundários mais interessantes - Gwen Stacy, a rival de Mary Jane e Eddie Brock, o fotógrafo rival de Parker - são pouco desenvolvidos, principalmente Stacy, que apenas aparece para causar ciúmes e atrapalhar o relacionamento de Parker e Mary Jane. Eddie até que consegue um bom desenvolvimento, e torna-se realmente ameaçador ao se tornar Venom, porém isso acontece tarde demais no filme, quando já se passou tempo demais gasto com o Homem de areia.

Dos três filmes, esse é definitivamente o que possui a história mais elaborada dos três, com várias tramas paralelas e é preciso estar bem atento ao assistir para pegar os detalhes. Um dos grandes acertos do filme foi dar uma dimensão maior ao confronto de Peter com Harry, tornando algo que parecia óbvio ao final do segundo filme em uma agradável surpresa. Com exceção de Parker (afinal, ele é o principal personagem do filme), Harry é o que mais ganha atenção ao longo da película. Sua presença é ameaçadora, principalmente após a primeira batalha o aracnídeo, em que cada reação de Harry é dúbia e apenas esperamos o confronto final entre os dois.

Esse capítulo da saga tinha tudo para ser um ótimo filme, porém há varios detalhes da história que são desnecessários, ou mal apresentados. Após ser dominado pela substância negra, Peter se torna uma criatura insuportável. Certamente essa era a intenção quando isso aconteceu (principalmente para justificar o material de publicidade que dizia "a maior batalha será interna), porém algumas cenas desse trecho do filme deveriam ter ficado na sala de edição, principalmente quando Parker sai dançando pela rua dando em cima de todas as mulheres que vê pela frente. Essa seqüência, além de desagradável de assistir, acaba criando total antipatia com o herói. Mesmo que essa tenha sido a intenção, essa poderia ter sido expressa de forma melhor.

Em um filme com um herói e três vilões principais, fica difícil de desenvolver todos de maneira ideal, e isso é o que o prejudica. As intenções foram boas, por tentar agradar a todos os fãs colocando o máximo possível dos personagens favoritos das histórias em quadrinho, mas isso acarretou em uma diminuição da qualidade da história comparando com os antecessores. Mesmo não tendo que gastar tempo apresentando os principais envolvidos da história, é sempre bom trabalhar com o que já se tem, porém fica difícil de trabalhar bem o grande número de acontecimentos e dar atenção a todos de maneira justa. Ao fim da película, fica a impressão de que acabamos de assistir a mais um filme do X-men, apenas com mais conteúdo.

Com certeza, esse filme se destoa do resto da trilogia, por várias razões. O fato de o herói se tornar uma pessoa má durante é uma das razões, fazendo com que esse se torne o capítulo mais sombrio da saga. A quantidade de conflitos internos dos personagens faz com que o filme se torne quase um drama de super herói com cenas de ação (o que é bom). Outro ponto que diferencia esse terceiro filme dos demais é o surgimento dos vilões (com exceção de Harry). O Homem de areia surge de maneira um tanto fantástica, e o mesmo acontece com Venom.

Analisando o filme tecnicamente, não há do que reclamar. O personagem do Homem de areia deu a oportunidade à equipe de efeitos especiais mostrar seu domínio ao tentar modelar digitalmente algo tão caótico quanto uma tempestade de areia. Por melhor que seja, ainda assim é notável que o personagem é uma composição de efeitos digitais, e lembram muito a cena da tempestade de areia em "A múmia". A trilha instrumental de Danny Elfman, que compôs para os filmes anteriores, se mantém bem fiel aos anteriores, o que é mais um ponto positivo ao filme.

O fato de que alguns personagens foram negligenciados pelos roteiristas, e outros que nem deveriam aparecer ganharam atenção demais não chega a comprometer o filme, porém fez com que esse deixasse de ser o melhor capítulo de uma das melhores (se não a melhor) saga de heróis dos quadrinhos. Quem apreciou os outros filmes da série por suas cenas de ação, pode acabar se decepcionando com esse, por ter mais conversa que brigas, propriamente dito. Para quem gostou da ênfase dos dramas internos de Peter Parker e seu relacionamento com Mary Jane, esse pode se tornar seu favorito da série. O que faltou foi uma mescla melhor desses dois pontos.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

O FANTASMA DA ÓPERA

O Fantasma da Ópera (The Phantom of the Opera, 2004)
Dirigido por Joel Schumacher
Por Matheus Mocelin Carvalho

Com o início de uma nova década, parecia que o filme musical havia caído novamente nas graças do público. Com as eventuais exceções, como Grease (1978) e O Show Deve Continuar (1979) e os musicais Disney nos anos 90, o gênero estava dormente desde a metade dos anos 60. Provavelmente o público havia se tornado cínico demais para aceitar os enredos geralmente ingênuos e simplistas dos musicais, e foi necessário um diretor visionário como Bazz Luhrmann para injetar nova vida ao formato. Fazendo um melange de sucessos da música popular com uma edição ágil e moderna, seu Moulin Rouge (2001) criou uma verdadeira sensação, sendo até mesmo indicado ao Oscar de Melhor Filme. No ano anterior, Dançando no Escuro já havia recebido atenção em meio aos fãs de cinema. Já em 2002, a adaptação cinematográfica do sucesso da Broadway Chicago gerou uma das maiores bilheterias do ano, e a produção conseguiu a proeza de ser o primeiro musical a levar o Oscar desde Oliver! (1968). Infelizmente, os filmes que pareciam ter sido o renascimento do gênero logo mostraram ser outras exceções. Em 2004 chegou às telas O Fantasma da Ópera, baseado no popular musical de Andrew Lloyd Webber. Apesar do grande pedigree (cujo show bateu o recorde de tempo em cartaz na Broadway), o filme foi duramente criticado e sua bilheteria não fez jus à lucrativa propriedade. Apesar de Os Produtores de 2005 também não conseguir dar continuação à onda de sucessos, Dreamgirls se consagrou como um dos maiores filmes de 2006.

Já adaptado anteriormente para o cinema (a versão mais popular continua sendo a de 1925, com Lon Chaney como o Fantasma), O Fantasma da Ópera tem início na Paris de 1919, em um leilão na abandonada Paris Opera House. Graças a um flashback, voltamos a 1870, onde o teatro estava em seus anos áureos. Ensaios estão acontecendo para Hannibal de Chalumeau, apresentando a estrela da ópera Carlotta Giudicelli (Minnie Driver). Quando a cantora sofre um “acidente” (causado na verdade por uma figura misteriosa), a corista Christine Daaè (Emmy Rossum) a substitui na peça, e recebe grande aclamação do público. Na sua noite de estréia, ela reconhece na platéia Raoul (Patrick Wilson), o seu romance de infância. Mas Christine é assombrada por sonhos de uma figura que ela acha ser seu falecido pai, e que se apresenta para ela após sua estréia. O homem misterioso logo se revela na figura do Fantasma da Ópera (Gerald Butler), que tenta fazer o máximo para levar Christine ao estrelato. Logo, esta sua relação se transforma em obsessão, e a jovem se encontra no meio de uma disputa entre o Fantasma e Raoul.

O Fantasma da Ópera foi dirigido por Joel Schumacher, o homem responsável por transformar a franquia do Batman em um desfile de cores e carros alegóricos com Batman Eternamente (1995) e Batman & Robin (1997). Sendo este um musical suntuoso, Schumacher parece se sentir em casa com cenários e figurinos extravagantes e opulentos. De fato, o filme faz jus às suas indicações ao Oscar, pois, com suas luxuosas roupas e sua belíssima fotografia, é um dos filmes mais belos visualmente dos últimos anos. As canções de sucesso são as mesmas do musical da Broadway, das quais se destacam as memoráveis “The Phantom of the Opera” e “All I Ask of You”. Com tantos ingredientes que fazem um musical de qualidade, é uma pena que a construção da história não faça justiça ao conjunto total. A história de amor e obsessão está presente, mas sem a paixão e o medo que se poderia esperar. Isto pode ser culpado à falta de desenvolvimento dos personagens que, pulando de um número musical para outro, não conseguem demonstrar muito a relação existente entre si. Deste modo, o triângulo amoroso entre Christine, Raoul e o Fantasma é enfraquecido, pois parece não haver tempo o bastante para os personagens se apaixonarem.

O Fantasma da Ópera sempre foi um dos mais interessantes personagens da literatura, sendo um gênio que descabe a loucura graças à sua paixão pela sua amada. Podemos traçar as origens da história ao conto original de A Bela e a Fera, da alma torturada e deformada que implora por amor. Graças aos números musicais o Fantasma consegue expressar seus conflitos internos, mas ainda assim sentimos que mais poderia ter sido feito com o personagem, apesar da boa interpretação de Gerald Butler. Alguns fãs do musical original podem discordar, mas ele possui a presença e a voz para o personagem. A verdadeira estrela do filme, no entanto, é a bela Emy Rossum (de O Dia Depois de Amanhã e Sobre Meninos e Lobos), que ilumina a tela todos os momentos em que aparece. É impressionante que ela tinha apenas dezesseis anos durante a produção, pois ao mesmo tempo em que transparece uma inocência necessária para a personagem, demonstra grande segurança no papel, especialmente no que diz respeito a sua voz. O elo fraco do elenco é o inexpressivo Patrick Wilson, que torna o desfalcado triângulo ainda menos verossímil.

Apesar das necessárias adaptações, O Fantasma da Ópera parece ser mais fiel às suas origens teatrais do que a maioria dos musicais. Assim como nos palcos, parte dos diálogos é cantada ao invés de recitada, o que pode incomodar alguns espectadores menos acostumados com o formato. A história é contada através de um flashback, e Schumacher comete o erro de nos trazer para fora deste em momentos inoportunos e desnecessários ao meio da narrativa, como se subestimasse que o público fosse esquecer o prólogo inicial (explicado na última cena). Apesar de tais deficiências, o filme ainda consegue agradar por sua grandiosa trilha sonora e fantásticos valores de produção. Provavelmente espectadores menos exigentes apenas se deixarão levar pela história de amor e pelas canções, e talvez não percebam suas limitações. Fãs do musical também deverão ficar satisfeitos ao ver seus momentos favoritos personificados na tela, especialmente os que não tiveram a chance de assisti-lo no palco. Ainda assim, é uma pena que entre um número e outro e entre tantas trocas de roupa, os produtores tenham esquecido de dar maior alma aos personagens.

BONEQUINHA DE LUXO

Bonequinha de luxo (Breakfast at Tiffany's, 1961)
Dirigido por Blake Edwards
Por Flávio Brun

Quando se fala em comédias românticas, normalmente o que se vem à mente é alguma hitorinha simples em que uma mocinha conhece um mocinho e ambos se apaixonam e acabam felizes para sempre, mesmo tendo algumas dificuldades no meio da história. "Bonequinha de luxo" poderia ter seguido esse caminho, porém não segue essa fórmula mágica de romance e esse é o ponto que o destacou como um clássico e torna-o uma referência na hora de se criar filmes do gênero.

Audrey Hepburn faz o papel de Holly Golightly, uma mulher que possui um passado com algumas surpresas a serem reveladas ao longo do filme. Holly mora sozinha em seu apartamento em Nova York, acompanhada apenas por seu gato sem nome, e sua vida baseia-se em fazer sempre algo novo. Ela possui duas formas de sustentar-se: sair com homens ricos (sonha em casar-se com um) e cobrar pelo serviço (mas não a ponto de se tornar uma prostituta) e ir visitar um chefão da máfia na prisão e passar a "previsão do tempo" (na sua ingenuidade ela não percebe que é mensagem em código da máfia para seu chefe). A possibilidade de um relacionamento sério com alguém é algo que Holly tem medo, e quando a oportunidade aparece, vemos o quanto ela está despreparada para isso. Seu gato sem nome reflete sua vida sem identidade, em que ela parece se conhecer muito bem, mas quando olha para dentro se assusta por não saber o que vê.

O par de Holly, Paul Varjak, é interpretado por George Peppard. Paul é um escritor que se muda para o apartamento no andar de cima de Holly logo no começo do filme, e os dois se conhecem no mesmo dia. Até o momento, Paul havia escrito apenas um livro, e se encontra com um bloqueio criativo. Sem emprego como escritor profissional, é sustentado por uma amiga, de quem é amante, porém é visível que isso é algo de que ele não se orgulha - ele possui ar de playboy, porém não se porta como um, e busca em sua vida algo sério e encontra, acidentalmente, no dia de sua mudança. Seu problema maior é a pessoa por quem se apaixona. Apesar de seu bom trabalho no papel, Peppard fica na sombra de Audrey, que está em um de seus melhores papéis aqui e, afinal, o filme pertence a ela.

O filme não se prende apenas ao relacionamento de Holly e Paul, com os dois se apaixonando à primeira vista e tentando vencer os obstáculos ao longo do filme (embora no primeiro encontro os dois tenham conversado um pouco demais, como se fossem ótimos amigos embora tenham se econtrado apenas para abrir uma porta). Isso é o que se veria em uma comédia romântica típica, porém em "Bonequinha de luxo" os dois começam apenas como amigos e acompanham as desventuras amorosas um do outro, tornando a relação do par algo superior aos romances comuns que temos aos montes na indústria cinematográfica. Como se tratam de dois personagens relativamente complexos, fugindo dos padrões de mocinho/mocinha impostos tantas vezes no cinema, temos aqui ótimas oportunidades de desenvolvimento, e a história as aproveita.

Mesmo com um roteiro bem desenvolvido, não é possível dizer que "Bonequinha de luxo" é um filme perfeito, com algumas pequenas falhas que poderiam ter sido facilmente eliminadas, mas por alguma razão permaneceram. O principal desses "defeitos" é o personagem de um dos vizinhos de Holly, o japonês que mora no último andar do prédio, sendo retratado de forma extremamente estereotipada e com momentos que deveriam ser engraçados, mas no final acabam sendo tão ridículos que nos perguntamos "Que diabos...?". A conclusão do filme também deixou a desejar, principalmente o discurso de Paul para Holly, sentimental e piegas - algo que o filme poderia ter deixado de fora.

A história do filme é baseada em um romance de Truman Capote que, ao vender os direitos de adaptação para a Paramount, queria que Holly fosse interpretada por Marilyn Monroe. Na época, os atores não tinham permissão de fazer filmes com o estúdio que quisessem, e Marilyn era contratada da Fox (e era um de seus maiores trunfos). Como, obviamente, a Fox não "emprestaria" Marilyn, e Audrey Hepburn era uma atriz bem-quista no cenário cinematográfico e ainda tinha contrato para mais um filme com o estúdio, foi assim que Holly ganhou vida. Dona de uma beleza diferente das beldades da época, Hepburn foi a escolha acertada para o papel, com um ar ingênuo que caiu bem à personagem - é difícil de imaginar Marilyn Monroe comendo bagel com café na frente da vitrine de uma joalheiria.

A trilha sonora do filme é um ponto extra neste grande clássico. "Moon River", cantada por Audrey em uma parte do filme, e cuja melodia é tema do filme, se tornou uma das canções mais lembradas da história do cinema, e com mérito. Os dois Oscar recebidos pelo filme foram na área musical. É curioso ver que Audrey canta nesse filme e foi preciso dublá-la três anos mais tarde no musical "My fair lady", onde poderia cantar à vontade.

Para os homens que acham que comédias românticas é coisa de mulher, ou para as próprias mulheres fãs do gênero, "Bonequinha de luxo" é uma caixinha de (boas) surpresas. Com bons momentos de humor e um romance diferente dos inúmeros já vistos, esse é um filme a ser visto - sozinho, para ver como o amor é possível e surpreendente, ou acompanhado, pois o simples fato de ser romance já pede para isso. O que não pode acontecer é deixar de vê-lo.

BELEZA AMERICANA

Beleza Americana (American Beauty, 1999)
Dirigido por Sam Mendes
Por Flávio Brun

Olhe mais de perto. "Beleza americana" é um filme que nos leva a fazermos uma auto-reflexão e analisarmos a superficialidade com que as pessoas se apresentam e como nos portamos em meio a essa sociedade.

O filme conta a história de Lester, um homem cuja vida parece ter atingido o fundo do poço e que resolve dar uma guinada em seu destino e mudar sua situação. Lester é casado com Carolyn, uma mulher que vive apenas de aparências e que confunde sucesso com felicidade. Lester e Carolyn tem uma filha, Jane, típica adolescente: insegura e revoltada. Temos os vizinhos, dos quais se destacam Ricky, um adolescente que trafica maconha e seu pai, um militar aposentado. Para completar a galeria de personagens principais temos Angela Hayes, uma menina que faz de tudo para chamar atenção dos homens e que sonha em tornar-se modelo.

"Em menos de um ano, estarei morto e, de certa forma, já estou". Essa frase, dita por Lester no começo do filme nos mostra a situação em que ele se encontra: odiado e desprezado pela família, com um emprego medíocre e aparentemente fadado a continuar nessa situação. Sua vida muda quando Lester vai com a esposa assistir à apresentação de Jane em um número de dança na escola, onde ele conhece Angela, a colega de sua filha e passa a ficar obcecado pela garota. O ponto de virada da vida de Lester, porém, é quando ele conhece Ricky e decide colocar suas frustrações pessoais e profissionais para fora e viver de forma plena. Kevin Spacey faz um ótimo trabalho ao retratar os dilemas de meia-idade enfrentados por Lester, o que o fez merecer seu Oscar de melhor ator por esse filme. Algumas das situações que Lester se depara durante o filme podem parecer exageradas, mas como o filme se trata de uma crítica às aparências, os acontecimentos não são tão absurdos.

"Não há nada pior do que ser comum". Angela Hayes é o modelo de adolescente que quer chamar atenção: só fala de sexo e se gaba por ter transado com vários. Ela é convicta de que é a pessoa mais linda do mundo e só tenta rebaixar as pessoas à sua volta. A primeira vez que Lester a vê é na cena da dança no ginásio (uma homenagem do diretor Sam Mendes ao diretor/coreógrafo Bob Fosse, criador de sucessos como "Cabaret", "Chicago" e "All that jazz"), onde as líderes de torcida dançam ao som de "On Broadway", tema de abertura de "All that jazz" e sua dança é bem no estilo das coreografias de Fosse, com movimentos pequenos, porém expressivos e sensuais. O impacto que Angela causa na vida de Lester é semelhante ao que acontece com o personagem de James Mason em "Lolita", ao conhecer a ninfeta que vira a cabeça do senhor de meia-idade. Mena Suvari foi a escolha certa para o papel, com um rosto não excepcionalmente bonito e que consegue expressar seu desprezo a todas as outras pessoas.

"Para se dar bem, uma pessoa dever apresentar uma imagem de sucesso o tempo todo". Carolyn Burnham é a personagem mais superficial do filme - seu único motivo de viver é tentar alcançar o sucesso profissional, mesmo tendo que abrir mão de sua felicidade conjugal. Em uma cena, Carolyn se importa mais com a possibilidade de Lester derrubar cerveja no sofá de 400 dólares forrado em seda italiana que com o simples prazer de aproveitar uma tarde de amor ao lado do marido. Na cena da festa em que Lester conhece Ricky, Carolyn começa a conversar com o Buddy, o "Rei imobiliário", seu principal rival de negócios e que tem o mesmo lema de vida. Annette Bening está em uma das melhores interpretações do filme, passando o ar de artificialidade que a personagem exige.

"Às vezes penso que há tanta beleza no mundo que acho que não consigo agüentar". Ricky é o espectador de tudo que acontece à sua volta. Ele é, juntamente com Angela, o catalisador para a jornada de auto-descobrimento de Lester, ao pedir demissão no meio de um serviço de garçon. Ricky é capaz de encontrar beleza nas coisas mais simples da vida, e denuncia a feiura quando a encontra, principalmente ao conhecer Jane e se apaixonar por ela por seu jeito recatado, jeito esse ressaltado por ela estar quase sempre junto de Angela, que é seu oposto. Sua família também é desestruturada, com seu pai preconceituoso, que comanda a casa como se fosse um exército e que tem sentimentos reprimidos, e sua mãe que passa o filme todo como se estivesse em um estado catônico, alheia à realidade à sua volta.

O filme é carregado por suas ótimas interpretações e roteiro - sua premiação com o Oscar prova que um bom roteiro ainda permanece como principal forma de entretenimento. Os diálogos do filme são excelentes, com uma mistura perfeita entre humor e drama familiar - o trailer do filme dizia "quem disse que um drama não pode ser engraçado e que uma comédia não pode ser tocante?". A direção de Sam Mendes também é muito acima do comum, ainda mais para um diretor estreante (há quem diga que essa foi a estréia mais badalada de um diretor desde "Quem tem medo de Virginia Woolf", de Mike Nichols). A história é pontuada por temas polêmicos - o desejo sexual de Lester por Angela (pedofilia), adultério, consumo de drogas e patricídio - porém os temas surgem naturalmente, sem que tenhamos uma mensagem positiva ou negativa sobre esses assuntos empurrada goela abaixo.

O título "Beleza americana" se refere a um tipo de rosas comum na América do Norte e uma de suas características é a ausência de espinhos e essa flor aparece em diversas cenas do filme, e são mais notáveis nas cenas de imaginação de Lester, onde aparece no mínimo uma pétala. Assim como a rosa que não tem espinhos, os personagens do filme vivem como se não tivessem alma, apenas uma casca com uma bela aparência e que têm medo de colocarem seus espinhos para fora.

A técnica de usar um narrador póstumo anunciando a própria morte no começo do filme, já usada em 1950 no magnífico "Crepúsculo dos deuses", é um toque especial no filme, ainda mais que sabemos que Lester será morto até o fim do filme logo após aparecer uma cena de um vídeo em que sua própria filha planeja matá-lo.

O ano de 1999 foi o ano de o cinema fazer críticas à nossa sociedade moderna. David Fincher mostrou seu ponto de vista com o inovador "Clube da luta" e Sam Mendes com seu "Beleza americana". Enquanto o filme de Fincher mostra como as pessoas não têm um propósito para viver e é também uma crítica ao consumismo desenfreado, Mendes nos apresenta sua visão de como as pessoas vivem de aparência e não vivem o que realmente sentem. Fincher apresenta sua crítica de forma sutil como um elefante dançando balé, enquanto a crítica de Mendes é algo a ser subentendido.

Um dos melhores de um ano de grandes filmes (1999 também foi o ano de "O sexto sentido", "À espera de um milagre" e "Magnólia"), "Beleza americana" se destaca como uma fábula moderna de como é viver de aparências e o preço que se paga quando se tenta viver uma vida sem preocupações. Lester em um momento diz "É ótimo quando nos damos conta que ainda temos a habilidade de surpreendermos a nós mesmos" e essa frase se aplica a esse filme: é ótimo ver como um filme ainda tem a habilidade de surpreender seu público.

HARRY E SALLY - FEITOS UM PARA O OUTRO

Harry e Sally - feitos um para o outro (When Harry met Sally, 1989)
Dirigido por Rob Reiner
Por Flávio Brun

A premissa de que homens e mulheres não podem ser apenas amigos é o tema principal de "Harry e Sally", mais uma comédia romântica no interminável mar de filmes do gênero - e não apresenta nada que já não tenha sido visto previamente.

Harry e Sally se conhecem em uma viagem de carro de Chicago a Nova York e, durante essa viagem, resolvem conversar. Ao fim da jornada, os dois se dão conta que não têm nada a ver um com o outro e cada um segue seu caminho até, cinco anos mais tarde, se reencontrarem por acaso. Ainda com as conversas da viagem na cabeça, Sally se convence que Harry não presta e ignora-o, até os dois se reencontrarem mais cinco anos depois. Nessa ocasião, os dois recém terminaram seus relacionamentos e acabam se tornando amigos, o que é totalmente contrário às crenças de Harry, que afirma que não há a possibilidade de duas pessoas de sexos opostos serem amigas sem que haja desejo sexual de uma das partes. Isso é pela metade do filme, e a segunda metade desenvolve os personagens e a evolução de sua amizade.

Como o gênero "comédia romântica" já foi explorado inúmeras vezes, "Harry e Sally" não apresenta nenhuma inovação - apenas lançou Meg Ryan ao estrelato, e a mesma aqui mostra o primeiro exemplo de seu gênero próprio de cinema. A definição de um "filme Meg Ryan" é comédia romântica, em que o casal sempre se odeia mas de alguma maneira acabam juntos (além, é claro, de terem Meg Ryan no papel da mocinha). Os principais representantes desse gênero são "Sintonia do amor", "Mensagem pra você" e "A lente do amor" (note que a palavra "amor" também é quase um pré-requisito aqui nas terras tupiniquins).

"Harry e Sally" é um filme de tom bem episódico, com cada período da vida deles sendo um segmento. Entre cada um desses "pedaços" de história, temos um casal de velhinhos diferente dando um depoimento de como se conheceram e algo curioso sobre suas relações e esses comentários servem para contrastar com a relação do casal-título do filme. Os dois passam por mais baixos que altos, mas desde que os dois se conhecem no começo do filme (e também com a ajuda do subtítulo infame "feitos um para o outro), sabemos a que conclusão a história chegará - assim como os outros filmes "Meg Ryan" (previsibilidade é outra característica do gênero).

A estrutura narrativa da obra lembra muito alguns filmes de Woody Allen ("Noivo neurótico, noiva nervosa", por exemplo), e também encontramos inúmeras referências a cultura pop - quem nunca assistiu "Casablanca" não deve assistir esse filme, pois há uma discussão filosófica sobre o final do clássico. Em diversas cenas encontramos "split-screens" (cenas em que a tela é dividida para mostrar duas ou mais coisas ao mesmo tempo) e essas são usadas com efeito e maestria, como em uma cena em que um casal amigo de Harry e Sally falam ao telefone com os dois, um em cada linha, tornando a situação mais engraçada do que realmente é.

A produtora Nora Ephron - que alguns anos mais tarde viria a se tornar diretora - é uma das responsáveis pela criação do gênero Meg Ryan (ela quem dirigiu "Sintonia do amor" e "Mensagem pra você). Aqui ela produziu (e escreveu) um dos melhores filmes desse gênero único e que foi copiado diversas vezes sem sucesso - apenas Meg Ryan consegue ser Meg RYan. Apesar de ser um filme eficiente, não é um bom exemplo de uma comédia hilária - possui apenas algumas cenas (um pouco) engraçadas - e como drama também não é muito funcional. O que faz o filme funcionar é a mistura de todos os elementos (e, óbvio, a Meg Ryan).

Por parte do elenco não há grandes reclamações. O personagem de Harry, interpretado por Billy Crystal é tão irritante quanto o ator em si, o que cai bem na tela e permite ao expectador partilhar das opiniões de Sally quanto ao mesmo. Meg Ryan é quem carrega o filme (não custa lembrar que é um filme de um gênero próprio da atriz) e interpreta realmente bem a personagem de Sally, passando por toda a metamofose do mau gosto dos anos 70-80 e finge orgasmos de modo que seria impossível duvidar de que não era verdadeiro a não ser pelo lugar onde isso acontece. Uma surpresa agradável no elenco de suporte é Carrie Fischer, que aqui aparece sem a famosa combinação de penteado exótico e biquíni dourado de "O retorno de Jedi". Apesar de fazer um papel totalmente diferente da princesa Leia, Carrie Fischer ainda assim continua com a mesma expressão que manteve durante toda a trilogia de "Star Wars", mas pelo menos é bom ver um rosto familiar em um papel diferente.

Quem já viu um filme "Meg Ryan" já viu todos, porém vale a pena dar uma conferida nesse, nem que seja para ver a clássica cena do orgasmo falso ou ver Carrie Fischer sem seu penteado de princesa Leia. Apenas deve se ter em mente que a vida não vai mudar após assistir o filme e que o cérebro pode ser esquecido no armário antes de assistí-lo.

FARRAPO HUMANO

Farrapo humano (The lost weekend, 1945)
Dirigido por Billy Wilder
Por Flávio Brun

O cinema é uma forma de expressão das mais eficientes, podendo passar uma mensagem a milhares de pessoas e entreter ao mesmo tempo. Atualmente, temos a televisão e a internet, porém em 1945, ano de produção de "Farrapo humano", as principais formas de comunicação eram o rádio e o cinema. "Farrapo humano" foi um dos filmes pioneiros na área de crítica social embutida no contexto da história, e com isso garante seu lugar na história da sétima arte.

Mais um título vítima de má tradução por parte da distribuidora nas terras tupiniquins, o título original (O fim de semana perdido) se refere ao fim de semana em que a história se passa. Don Birman é um escritor que passa por uma crise de criatividade e o fato de ser um alcóolatra compulsivo não ajuda em nada a situação. Seu irmão, Wick, planeja um fim de semana para os dois no campo, a fim de afastar Don da bebida. Porém, ao ficar sozinho por algumas horas, Don sai de seu apartamento e bebe até perder a hora de sua viagem. Ele, então, fica pela cidade tentando arranjar alguma maneira de poder beber mais e mais. Durante algumas de suas bebedeira conhecemos um pouco de sua história, à medida que ele vai contando-a ao garçom ou algum conhecido no bar. Seria impossível não mencionar sua namorada Helen, uma moça rica absolutamente apaixonada pelo escritor, que não desiste dele mesmo sabendo de seus problemas com a garrafa.

Apesar de comum nos dias de hoje, antes de "Farrapo humano" eram incomuns os filmes que tentavam fazer alguma forma de crítica à sociedade de maneira explícita. Esta foi uma obra inovadora nesse aspecto. O diretor e roteirista Billy Wilder possuia o dom de apresentar filmes com temas polêmicos - a frieza do cinema com estrelas mais antigas em "Crepúsculo dos deuses" ou a idéia de adultério em "O pecado mora ao lado" - e aqui ele põe na tela um problema que aflige grande parte das famílias: o alcoolismo. Tratar de assuntos polêmicos de forma explícita pode tornar o filme condescendente demais com as vítimas dos problemas abordados ou parecer tentar empurrar uma mensagem goela abaixo de quem assiste, e esse é o pior problema de filmes como "A luz é para todos" e "No calor da noite", obviamente inspirados em "Farrapo humano". O único problema claramente visível com "Farrapo humano" está no personagem de Don, que na maior parte das vezes se enche de auto-piedade, discordando de todos que dizem existir uma saída para ele.

Além das inovações na história e roteiro de cunho social, este filme também apresentou novidades na área técnica que, apesar de pequenas, passaram a ser usadas largamente nos anos posteriores. Uma das mais notáveis foi o estilo de filmar um personagem caminhando em direção à câmera, enquanto marquises e sinais de neon passam por trás dele. Além disso, "Farrapo humano" também foi o primeiro filme a usar o teremin na composição da trilha sonora. O teremin é um instrumento musical responsável pela criação de um som muito utilizado em filmes de alienígenas, porém utilizado em Farrapo Humano para salientar a sensação de embriaguez de Don.

Baseado no livro homônimo de Charles R. Jackson, o filme não é fiel a obra literária. No livro, o personagem de Don bebia devido a conflitos internos relacionados à sua orientação sexual, porém o tema não foi explorado por anos e era sempre eliminado nas adaptações para cinema (um exemplo é "Gata em teto de zinco quente", que removeu o homossexualismo de sua história). Mesmo com seu potencial podado por medo da reação do público ao tema, "Farrapo humano" ainda assim continua uma obra eficiente, como exemplo de inovação na arte de fazer cinema. Uma das obras mais conhecidas da literatura moderna, "O iluminado", é claramente uma versão de terror desse filme. Inclua um hotel com fantasmas e Don facilmente se torna o personagem Jack do livro de Stephen King.

Talvez um pouco exagerado em alguns momentos, esse é um filme que vale ser visto por diversas razões, seja para ver como a bebida pode arruinar uma vida ou o modo como o cinema pode cumprir uma função social de forma convincente. Em "Farrapo Humano", Billy Wilder novamente toca nas feridas do público e abre novos horizontes na indústria cinematográfica.