segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

EM SEU LUGAR

Em seu lugar (In her shoes, 2005)
Dirigido por Curtis Hanson
Por Flávio Brun

Rosie Feller (Toni Collette) possui muitos sapatos. Seu closet parece uma seção de uma sapataria, pois, de acordo com ela, comprar sapatos é bom porque não ficam feios nela, que está alguns quilinhos acima do peso. Sua irmã Maggie (Cameron Diaz) acha que é um crime que tantos sapatos tão bonitos fiquem lá parados, e tenta fazer com que eles "aproveitem a vida". À primeira vista, essa sinopse dá a impressão de que este é apenas um clássico filme direcionado apenas ao público feminino e sem profundidade nenhuma, mas não o é.

O título original do filme, "In her shoes", se traduzido ao pé da letra seria "nos sapatos dela". E sapatos é o que não falta aparecer. São muitas as cenas em que a primeira parte da pessoa a aparecer são os sapatos, o que dá um certo ar de identidade ao filme além de ajudar a deixá-lo mais estilizado. Eles exercem um papel importante no filme, sendo usado diversas vezes como razão para as irmãs discutirem (qual a dupla de irmãs que nunca discutiu por uma usar o vestuário da outra?).

A vida de Rosie não é das mais agradáveis. Descontente com sua aparência e insegura por natureza, ela é a personificação da mulher independente: trabalha como advogada em uma grande empresa, tem sua estabilidade financeira, solteira e infeliz. Sua rotina é basicamente trabalho-casa-trabalho. Ocasionalmente se encontra com uma amiga (Brooke Smith), que muitas vezes acaba sendo sincera demais. Mais freqüentemente que o desejado, Rosie acaba tendo que "salvar" sua irmã de alguma encrenca - o começo do filme mostra uma dessas, em que Maggie fica bêbada e desmaia durante uma reunião de veteranos de sua escola. Como a vida amorosa de Rosie é quase nula, nas poucas situações em que ela consegue alguém para matar sua carência ela tira fotos, para se convencer de que o que aconteceu foi real.

Para contrastar com Rosie, sua irmã Maggie é totalmente dependente. Aos vinte e vários de idade (senão trinta e poucos) ainda mora com o pai (Ken Howard) e sua detestável madrasta (Candice Azzara), cujo único assunto é sua filha a qual se refere como "minha Marcia" e que expulsa Maggie após ela voltar bêbada para casa. Incapaz de permanecer em um emprego (uma das melhores risadas proporcionadas pelo filme é a explicação do motivo de ela ter perdido um dos empregos), Maggie vai morar com a irmã, que tenta de todas maneiras lhe conseguir um emprego, mas Maggie tem um problema: sua capacidade de raciocínio e leitura são muito abaixo do normal. Após algum tempo, o atrito entre as irmãs cresce de tal maneira que Rosie se vê obrigada a mandar a irmã para a rua e as duas se separam com uma grande dose de amargura de ambas as partes.

Para completar a galeria de personagens, há ainda a avó das garotas, Ella (interpretada pela já lendária Shirley MacLaine). Ella foi afastada das meninas após a morte intencional de sua filha, mãe das protagonistas, e perdeu o contato com as mesmas desde então e agora vive em um tipo de resort para idosos. Sem lugar para onde ir, Maggie descobre o paradeiro da avó e vai morar com ela, mas apenas por comodidade, e não afeição. Com o tempo, Maggie acaba descobrindo seu lugar e se transforma em uma pessoa totalmente diferente da vista no começo do filme, seguindo a tradição do cinema clássico de que os personagens quase sempre devem ter um arco de evolução.

O filme vencedor do Oscar de melhor filme de 1988, "Rain man", também tratava das relações de irmãos. Ambos os filmes tentam enfatizar as relações de fraternidade dos seus protagonistas, e conseguem com sucesso. "Em seu lugar" pode ser visto como uma visão mais açucarada e menos profunda de seu predecessor. Além disso, os pares de irmãos dos dois filmes seguem o mesmo padrão: um deles é independente (Tom Cruise, em "Rain Man") e o outro possui algum problema mental (Dustin Hoffman, no filme de 1988). Claro que ao passar para o universo feminino e em uma comédia, algumas coisas tiveram que ser atenuadas. O problema mental de Maggie é dislexia e QI baixo, enquanto o Raymond de "Rain Man" era autista.

Filmes que tentam enfatizar em relações familiares tendem a ser manipuladores em excesso e, felizmente, "Em seu lugar" consegue evitar bastante isso, mas não que esteja livre de seus problemas. Uma cena perto do fim do filme é o exemplo disso, mas provavelmente foi utilizada apenas para extrair uns "ooohhh" e "aaahhh" da platéia. Os vários pontos altos que "Em seu lugar" são os dramas de Maggie. Sua personagem é de longe a mais complexa, e responsável pela maior parte das reações ao filme. O relacionamento com sua avó, que começa frio e materialista, se torna afetivo e amigo com o passar do tempo. O senhor do asilo para quem Maggie lê, parece ter como único propósito explorar a fraqueza da garota e expandir seus horizontes, e também para justificar a cena do fim do filme mencionada anteriormente.

Além de uma história boa e relativamente bem contada, "Em seu lugar" também conta com atuações de peso por parte de todo o elenco. Cameron Diaz mosta aqui seu lado dramático e prova que seu talento não se limita apenas a comédias adolescentes e é capaz de comover e rir em um mesmo filme. Toni Collette, a Muriel de "O casamento de Muriel" e a mãe do menino assombrado por fantasmas de "O sexto sentido" volta em mais uma ótima interpretação, mostrando que não é só a boa aparência que faz uma boa atriz. A versatilidade dessa atriz chega a ser assombrosa, e é uma pena que ela não tenha o reconhecimento que seu talento merece. Shirley MacLaine já é uma lenda viva, com um histórico invejável de filmes aclamados ("Volta ao mundo em 80 dias", "Se meu apartamento falasse", "Laços de ternura") e serve para preencher o elenco feminino do filme. Os homens são peça quase descartável ao longo do filme, sendo que a história gira em torno das mulheres e suas relações, com os Adões da história servindo apenas como catalisador das reações e decisões das Evas.

Se encarado como um grande drama, esse é um filme modesto, porém se visto como um "filme de mulherzinha" (os famosos "chick flicks" nos Estados Unidos), este é um filme ambicioso. Definitivamente vale a pena assistir pelo ótimo desempenho de Cameron Diaz, que simplesmente rouba a cena, além é claro dos outros integrantes do elenco e da história simpática. Ao ser solicitado(a) a assistir um filme para o público feminino, se eu estivesse em seu lugar, eu escolheria este.

domingo, 23 de dezembro de 2007

ROCKY HORROR PICTURE SHOW

Rocky Horror Picture Show (The Rocky Horror Picture Show, 1975)
Dirigido por Jim Sharman
Por Flávio Brun

Qual é a primeira impressão que uma pessoa em sã consciência teria ao ouvir falar de um filme cujos personagens vêm de um planeta chamado Transexual na galáxia chamada Transilvânia? Provavelmente bizarro é a melhor palavra pra descrever o filme, e ele realmente é muito, mas muito bizarro mesmo. E igualmente divertido.

Quando começa o filme, há uma boca sem corpo cantando sobre ficção científica e sessões duplas de cinema. Essa é a primeira homenagem aos filmes trash de terror e ficção científica dos anos 50, em que era comum pagar a entrada e assistir dois filmes, normalmente um de baixo orçamento seguido da atração principal. Para quem é fã do gênero, apenas essa música de abertura já fornece uma boa lista de filmes a se assistir. É divertido ficar ouvindo e pensando "ah, eu já vi isso!", por mais absurdo que "isso" se refira. Eu fui um dos que saíram à busca dos clássicos mencionados - e recomendo pelo menos dois deles: "O dia em que a terra parou" (na canção diz "Michael Rennie estava doente no dia em que a terra parou") e "Planeta proibido" ("Anne Francis estrela em 'Planeta proibido', ô ô ô ôooou").

Logo após a canção de abertura e créditos, o filme começa de forma bastante inocente, com Brad Majors (Barry Bostwick) e Janet Weiss (Susan Sarandon) apaixonados cantando sobre seus planos, após a cerimônia de casamento de um casal de colegas deles. Após se tornarem noivos, eles decidem ir visitar seu ex-professor e amigo Dr. Everett Von Scott (Jonathan Adams), porém se perdem na estrada e vão parar em um castelo com aparência estranha e habitantes mais estranhos ainda. No castelo está havendo uma celebração em que o mestre do castelo, o Dr. Frank-N-Furter (Tim Curry) está prestes a dar vida a sua criatura, Rocky Horror (Peter Hinwood), seu objeto de desejo sexual. Os outros moradores do castelo são Magenta (Patricia Queen), assistente de Frank e seu irmão, Riff Raff (Richard O'Brien), o mordomo de aparência assustadora. Logo após o "nascimento" de Rocky, surge um projeto experimental de Frank, Eddie (Meat Loaf), um roqueiro gordo e feio que aparece no filme apenas para cantar uma canção (a ótima "Hot Patootie) antes de ser assassinado por Frank (uma eutanásia, de acordo com o cientista, pois "ele tinha charme, mas não tinha músculos").

A história é terrivelmente mal contruída, os efeitos especiais são piores ainda, mas esse é o modelo de filme que criou o gênero "de tão ruim é bom". Na época de seu lançamento, ele foi ignorado pelo público e encontrou seu lugar nas sessões tarde da noite em cinemas pequenos, mas cujos fãs estavam sempre lá, todas as semanas. Com o passar do tempo, esse se tornou um dos filmes mais cultuados da história, sendo o filme que passou mais tempo em cartaz de todos os tempos (creio que ele ainda está em cartaz, desde 1975). Provavelmente o que torna-o tão especial é a vibrante trilha sonora, as experiências de se assistir ele com um público tão devoto e também o tom irreverente e debochado que permanece durante toda a duração do filme.

É difícil de acreditar que esse filme conseguiu ser produzido e aprovado para exibição na época em que foi feito. Um filme com todo o tipo de material ofensivo à sociedade, com transexuais assassinos, criação de homem objeto, expressão de liberação sexual, canibalismo e muitos outros temas mais absurdos, que se não tivesse sido feito quando foi, jamais teria o mesmo efeito. A impressão que dá quando se assiste é a mesma que ocorre quando se assiste "South Park" - sempre me apanho pensando "o que diabos eu estou gastando meu tempo assistindo essa coisa tosca", mas sempre é um prazer assistir. É um dos mais divertidos guilty pleasures que o cinema já fez.

Mencionar a presença de Susan Sarandon no elenco é uma surpresa e tanto, já que hoje em dia ela é conhecida por seus trabalhos mais sérios, mas não podemos esquecer que ela fez muitos filmes ruins em sua carreira, principalmente no começo. Dessa má fase da atriz, este é o que mais se destaca, por causa da fama que ele adquiriu ao longo do tempo. Quem diria que algum dia viriam Susan apenas de lingerie cantando uma música cujo refrão é "toque em mim, quero me sentir suja". Mas o destaque mesmo vai para Tim Curry. Ele não é um grande ator, não fez nenhum grande papel em sua carreira, mas aqui dá um show de interpretação em um papel que tem que ser muito corajoso para interpretar. O Frank encarnado por Curry é apresentado de forma tão natural que é difícil duvidar que ele é uma pessoa de verdade. Curry provavelmente pensou "Já que estou no inferno, vamos abraçar o diabo", pois ele não parece nem um pouco arrependido de ter feito o papel. Qualquer outro ator teria passado o seu descontentamento com o papel em uma situação similar (exemplo é Terrence Stamp, em "Priscilla - rainha do deserto", em que seu travesti é falho e o ator não parece à vontade no papel).

"Rocky Horror Picture Show" é uma parada de homenagens a todo tipo de filme de terror, com um pot pourri de referências aos clássicos de filmes cultuados desde sua abertura até seu final. O próprio Rocky Horror é o monstro de Frankenstein do filme, assim como eles subindo na torre da RKO (para quem não sabe, RKO era um dos maiores estúdios dos anos 30) tal qual King Kong subindo no Empire States. O cabelo de Magenta ao fim da fita é igual ao da noiva de Frankenstein, outro clássico adorado pelo público e crítica, Riff Raff é o típico mordomo lacaio que anda curvado pela mansão. Para quem gosta desses clássicos do cinema, é divertido ficar "catando" as referências e vê-las de roupagem nova. O que deixa "Rocky Horror" menos interessante é seu final, cujo tom baixo destoa bastante do anarquismo do resto do filme. Falando em final, na versão americana foi cortada a música de encerramento "Superheroes", mas felizmente no DVD ela está lá presente.

Embora a experiência de se ver no cinema nas sessões da meia noite não é algo possível de fazer aqui no Brasil, ainda assim vale a pena assisti-lo numa tarde chuvosa, nem que seja para dar umas risadas e se contagiar com as músicas (duvido alguém não ficar com "Time Warp" na cabeça após o término). Se a vontade de assistir como as sessões especiais de cinema, há um extra no DvD que diz o equipamento necessário e aparecem legendas dizendo o que fazer e quando com esse equipamento. O que tem que deixar de lado é todo o preconceito e preceitos morais e divertir-se!

domingo, 21 de outubro de 2007

GREMLINS

Gremlins (Gremlins, 1984)
Dirigido por Joe Dante
Por Flávio Brun

Tradicionalmente, todos os anos o mercado cinematográfico americano é inundado de filmes de celebração dos feriados de fim de ano, carregados de espírito natalino onde tudo é feliz e bonitinho. Em 1984, essa regra foi quebrada com o lançamento de "Gremlins", um dos filmes mais anárquicos e divertidos e que tornou-se um ícone da cultura pop dos anos 80.

A pacata cidadezinha de Kingston Falls é o cenário dessa comédia de humor negro (ou seria melhor terror engraçado?) e é onde Billy Peltzer mora com sua família. Seu pai, um inventor cujas criações nunca funcionam, lhe dá de presente de natal um animalzinho peludo e bonitinho, que impressionantemente canta (ou melhor, murmura) e entende tudo que é dito. Esse animalzinho, um Mogwai ("Demônio", em cantonês) possui três regras, que se quebradas podem causar conseqüencias nada agradáveis: não molhar, não expor à luz forte e não alimentar após a meia noite. Como é de se esperar, se há regras, elas serão quebradas em algum momento, e de fato isso acontece.

O filme pode ser facilmente separado em duas partes bem distintas: do começo até os Mogwais formarem seus casulos, e desse ponto até o fim. A primeira parte é o típico filme natalino, muita neve, pessoas felizes e presentes. A segunda metade é a alma do filme, onde o espírito natalino é exorcizado por criaturas verdes que mais parecem pequenos demônios (fazendo jus ao seu nome em cantonês) e a idílica cidade de Kingston Falls torna-se um inferno para seus habitantes. Se há algo a criticar no filme é o fato de o segundo ato perder a narrativa, pois nada mais é que uma sucessão de cenas engraçadas (e muito!) e muita profanidade por conta dos Gremlins.

Na época de seu lançamento, "Gremlins" (juntamente com "Indiana Jones e o templo da perdição") foi um dos responsáveis de mudar o sistema de classificação etária usado nos Estados Unidos, por se tratar de um filme com tema pesado demais para crianças assistirem, mas também não pesado o suficiente para proibir para elas. Isso é justificado no segundo ato, quando os monstrinhos verdes saem pela cidade fazendo suas estrepolias com muita violência e profanidade - eles fumam, bebem, e matam, entre outras coisas. Outro motivo de considerar um filme "pesado" para crianças é a história de Kate (a mocinha do filme), em que ela conta o motivo de ela odiar as festas de fim de ano (algo que pode chocar até pessoas mais crescidas).

A primeira metade da história é pontuada de referências de todos os tipos de filmes. A cidade em que a história se desenrola é extremamente parecida com a cidade do filme "A felicidade não se compra", o clássico definitivo de natal (inclusive aparece uma cena desse mesmo filme no começo). Vários filmes de Spielberg aparecem de forma camuflada, seja em uma marquise de cinema com o nome de produção, um outdoor com um apresentador de rádio que lembra muito Indiana Jones ou mesmo um bonequinho do E.T. em uma prateleira. Na segunda metade, as referências se tornam menos sutis ao serem encarnadas pelas criaturas verdes e tendo seu grande ápice com eles em um cinema cantando uma das músicas de "Branca de neve e os sete anões".

Um dos pontos mais notáveis de "Gremlins" são seus aspectos técnicos. Em momento algum as criaturas parecem inverossímeis, graças ao ótimo trabalho dos responsáveis pelos efeitos especiais, que utilizaram de miniaturas, eletrônicos e stop-motion com primor e que se mostra superior a muitos trabalhos de computação gráfica avançada. Outro destaque é a maravilhosa trilha de Jerry Goldsmith, com o tema das criaturas solidificando mais ainda o tom anárquico do filme.

Um dos ícones dos anos 80, "Gremlins" é uma viagem ao mundo dos pesadelos natalinos, da forma mais divertida possível, e cujos maiores apreciadores serão as crianças, por mais violento que seja. Apenas deixe a pipoca de lado, caso assista depois da meia noite, pois nunca se sabe, pode haver um gremlin escondido pela sua sala.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A MALVADA

A malvada (All about Eve, 1950)
Dirigido por Joseph L. Mankiewicz
Por Flávio Brun

Há quem diga que é difícil de se escrever sobre filmes dos quais se gosta. Uma vez que minha vida como cinéfilo é dividida em pré-"A malvada" e pós-"A malvada", é possível afirmar que falar desse filme é uma missão quase impossível para mim. Pode até parecer exagero meu, mas garanto que não sou o único a venerar esse clássico da época de ouro do cinema estadunidense.

O mundo da sétima arte trabalha de forma engraçada. Muitas vezes passam-se anos e anos sem um grande filme, e em compensação surgem vários ótimos filmes em um único ano. Um desses anos foi 1939, com "... E o vento levou", "O mágico de Oz", e mais alguns outros. 1994 foi outro desses anos, com "Forrest Gump", "Pulp Fiction" e "Um sonho de liberdade", mas de todos os anos produtivos de Hollywood, o melhor foi 1950, em que foram produzidas duas das melhores obras já feitas na indústria cinematográfica: "A malvada" e "Crepúsculo dos deuses". Ambos são filmes obrigatórios de serem assistidos por todo aquele que se intitula cinéfilo, e possuem o máximo que um filme pode atingir em todos os aspectos, principalmente narrativa e interpretação.

Como de praxe, os tradutores tupiniquins foram criativos ao passar o título para nossa língua e de "Tudo sobre Eve" o filme passou a se chamar "A malvada", em uma manobra que não apenas fez com que essa obra-prima recebesse um título de novela mexicana, mas também faz esperar que uma das personagens seja má, algo que o título original não menciona. Felizmente, em 1999 o filme espanhol "Tudo sobre minha mãe" fez sucesso ao prestar uma grande homenagem a esse filme, e fez com que muitos redescobrissem esse grande clássico (um personagem do filme espanhol diz: "que mania eles têm de trocar o título! 'All about Eve' quer dizer 'Tudo sobre Eve'").

Ao começo do filme, somos apresentados a uma premiação, o prêmio Sarah Siddons que é o Oscar do teatro. Na platéia do evento vemos um grupo de pessoas com rostos indiferentes, e até infelizes de certa forma, enquanto uma voz apresenta-nos os personagens. Essa voz pertence a Addison DeWitt (George Sanders), um crítico cuja caneta é mais venenosa que a mais perigosa das cobras. Logo a seguir, ele apresenta o diretor premiado na noite, Bill Sampson (Gary Merrill) e o autor também premiado, Lloyd Richards (Hugh Marlowe) - de acordo com Addison, meros pilares que seguram o holofote que é a atriz, Eve Harrington (Anne Baxter). Também são apresentados outros personagens, principalmente Karen Richards (Celeste Holm), a esposa de Lloyd e Margo Channing (Bette Davis), uma atriz quarentona parecendo completamente indiferente ao que se passa no recinto.

No momento em que Eve recebe seu prêmio, tudo simplesmente pára (em um dos primeiros usos de freeze frame da história) e Addison diz: "Eve. (...) Já falaram sobre o que ela come, o que ela veste, quem ela conhece e onde ela esteve, quando e onde ela vai ir. Eve. Vocês já sabem tudo sobre Eve. O que mais há sobre Eve que vocês não sabem?". E nesse instante, começa o flashback que conta a história de ascenção de Eve, narrada ora por Karen, ora por Margo. Tudo começou em uma noite chuvosa, onde Karen encontra Eve, uma garota pobre e apaixonada pelo trabalho de Margo. Como Karen e Margo são melhores amigas e vendo a devoção da jovem por Margo, Karen resolve apresentá-la à amiga, que se comove com sua história e leva-a pra casa empregando-a como cozinheira, acompanhante, conselheira. Todos parecem adorar Eve, com exceção de Birdie (Thelma Ritter), que desde o primeiro momento sente que Eve está tramando algo. Com o tempo, Eve começa a mostrar seus reais interesses e torna-se a malvada a qual o título se refere.

A sinopse pode parecer um tanto familiar, mas é porque o tema já foi inumeramente reutilizado, mas nenhuma imitação conseguiu chegar aos pés do original. As novelas da Globo, principalmente as de Gilberto Braga, possuem uma Eve e uma Margo disfarçadas. O caso mais descarado de cópia foi na novela "Celebridade", que nada mais foi que "A malvada" reduzida à baixeza das novelas brasileiras e extendida em centenas de capítulos.

Ao assistir a performance de Bette Davis como Margo Channing, estabeleci um padrão de referência a qual todas as interpretações devem ser medidas. Nenhuma atriz conseguiu igualar-se a Bette neste filme, que está simplesmente perfeita. Na época do lançamento, a atriz Tallulah Bankhead entrou com ações contra Bette por esta ter usado dos mesmos maneirismos por que era conhecida. Bette possuia todo o equipamento necessário para interpretar este papel que é aquele que não aparece mais de uma vez na vida de uma atriz (muitas vezes nem chega a aparecer). Impressionante é o fato de que Bette foi uma solução emergencial para a produção, pois já haviam escolhido Claudette Colbert para o papel, mas ela havia sofrido alguns problemas de saúde e teve que se ausentar, para a sorte de Bette (e do público). Ninguém poderia ter feito uma Margo Channing melhor! A atriz possuia tanto poder de expressão corporal que até nos momentos em que não fala nada seu rosto fala por si, principalmente por seu olhar - até uma música ela possui sobre seus olhos (a saber, a música é "Bette Davis' eyes").

É possível afirmar que o pivô do filme é Margo, e ao seu redor figuram estrelas que brilham com excelentes atuações. Celeste Holm está bem como Karen, mas em matéria de atriz coadjuvante, o destaque vai para Thelma Ritter. Estranho saber que esta atriz com o talento que tem sempre trabalhou como coadjuvante, e mais estranho ainda ver sua personagem aqui simplesmente sumir na metade do filme (se há algo a reclamar de "A malvada" é isto). Apesar de ser personagem-título, Eve é uma coadjuvante no filme, mas Anne Baxter insistiu em ter seu nome indicado como atriz principal nas premiações. A presunção da atriz foi tamanha que fez com que ela e Bette perdessem o prêmio, que quase certamente ambas teriam ganhado caso nomeadas apropriadamente. Não é despropositalmente que apenas as mulheres são mencionadas, pois os homens são meros combustíveis das ações tomadas pelas mulheres. De todos eles, o melhor é, com certeza, George Sanders, que torna toda a arrogância de seu personagem incrivelmente verossímil. Em linhas gerais, este é o melhor elenco já reunido para um filme.

O diretor e roteirista Joseph L. Mankiewicz é o responsável por dar a alma de todos esses personagens. Irmão de Herman Mankiewicz (roteirista de "Cidadão Kane", eleito por vários especialistas como o melhor filme de todos os tempos), Joseph prova que o talento é de família e escreveu um dos roteiros mais enxutos e referenciáveis já vistos. Praticamente todas as frases são carregadas de um tom ácido, não só de personagem para personagem, mas também sobre os assuntos que aborda, principalmente quando cinema e teatro estão em pauta. Logo no começo do filme, por exemplo, Addison discursa sobre o prêmio Sarah Siddons com a seguinte fala:

"Talvez o prêmio Sarah Siddons seja desconhecido para você. Ele foi poupado do sensacionalismo dado a prêmios questionáveis tais como o Pulitzer ou aquele prêmio anual dado por aquela sociedade cinematográfica".

Mesmo com toda a ironia presente quando cinema é mencionado, ele sutilmente aparece como uma ameaça ao teatro, que rouba seus atores e diretores. O personagem de Gary Merrill diz "não diga que cinema não é teatro. Pode não ser seu teatro, mas pode ser o de alguém". Aqui o ataque ao cinema é sutil, apenas acusa-o de ladrão de pessoal, enquanto em "Crepúsculo dos deuses" o ataque é mais direto e eficiente. A paixão de Eve pelo teatro, por exemplo, não passa de uma grande atuação, basta ver perto do fim quando ela se mostra totalmente indiferente quando é questionada se vai voltar ao teatro após ir a Hollywood ou não.

Além de tudo isso, há uma série interminável de falas que figuram entre as mais famosas do cinema - a mais lembrada é "Apertem os cintos. Vai ser uma noite turbulenta". Vale a pena lembrar que o filme foi feito no começo dos anos 50, em que a televisão era uma ameaça ao cinema, e Addison DeWitt lança a frase final sobre a superioridade do cinema sobre a televisão a uma atriz iniciante (Marylin Monroe, ainda desconhecida): "TV é isso, nada mais que testes".

Além de toda a sagacidade verbal que o roteiro possui, há também uma série de outras sutilezas. Há duas ótimas cenas cujo simbolismo fala mais que um grande diálogo. Uma delas é quando Eve é flagrada fazendo reverências com o vestido de Margo. Quando ela é vista, ela segura o vestido tal qual um corpo, simbolizando sua mentira morta e levada embora. Desse momento em diante, Margo abre os olhos e vê que Eve não é tão boazinha quanto parece. Já no final do filme quando Phoebe (Barbara Bates) segura o prêmio de Eve, a associação de espelhos refletem o que está por vir e servem como um aviso dos milhares de impostores que circulam e estão todos combatendo entre si para pôr suas mãos em seus objetivos. Essa é um dos finais mais lindos e impactantes já filmados, e não há palavras o suficiente para descrevê-lo. De acordo com o código Hayes, que dizia que nenhum filme poderia ofender os valores morais, muita coisa que seria ofensiva está lá, sim, porém de forma muito bem camuflada, como por exemplo o lesbianismo de Eve ou as insinuações de Karen sobre a integridade do marido quando Eve vai lhe pedir desculpas ("de joelhos, sem dúvida!", diz ela).

Os números ajudam a comprovar o que o filme realmente oferece: este é um dos recordistas do Oscar, com 14 indicações (alcançado apenas quase meio século depois por "Titanic") das quais foi premiado em seis categorias (melhor filme, roteiro, direção, ator coadjuvante, figurino e som) e segura também o recorde de indicações de atuações femininas, com praticamente todas as atrizes do filme indicadas (Bette Davis e Anne Baxter como atriz principal e Thelma Ritter e Celeste Holm como atrizes coadjuvantes), mas por incrível que pareça nenhuma delas levou a estatueta para casa. Na categoria principal, Bette Davis realmente merecia ter levado o prêmio, mas provavelmente ela e Gloria Swanson (a Norma Desmond de "Crepúsculo dos deuses") se anularam e no fim nenhuma delas ganhou. O mesmo deve ter acontecido com as atrizes coadjuvantes, pois elas estavam incrivelmente bem em seus papéis, embora não no mesmo nível de Bette e Gloria. Ironicamente, em um filme com tanta indicação para atrizes, a única estatueta recebida por atuação foi para George Sanders, mais que merecida por sua interpretação memorável de Addison DeWitt.

Somado a tudo isso, o que tornou "A malvada" um divisor de águas na minha vida como cinéfilo foi simplesmente porque esse filme me abriu a mente para uma outra forma de cinema, e me introduziu à verdadeira sétima arte, que parece ter se perdido no tempo. Felizmente fui resgatado por esse filme e aprendi a apreciar os clássicos do passado.

Em uma cena, Addison DeWitt, mencionando sua primeira impressão sobre Eve como atriz, diz a Margo:

"Como você sabe, eu vivo no teatro como um monge vive em sua fé. Não tenho outro mundo, nem outra vida - e muito raramente acontece aquele momento de revelação por qual todo crente espera e reza. Você foi um, Jeanne Eagels outro. Eve Harrington será um deles".

"A malvada" foi o meu.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

HAIRSPRAY - EM BUSCA DA FAMA

Hairspray - em busca da fama (Hairspray, 2007)
Dirigido por Adam Shankman
Por Flávio Brun

Os anos 60 parecem estar voltando à moda, principalmente na forma de musicais adaptados de peças da Broadway, o que não poderia ser mais próprio, pois essa foi a década de maior sucesso dos musicais. Em 2005 foi feito o amoral mas divertido "Os produtores". Em 2006 foi a vez da música negra entrar nos filmes musicais em "Dreamgirls - em busca de um sonho". Esse ano foi a vez de "Hairspray", que é definitivamente o mais divertido e acessível ao público dos musicais da safra que estamos tendo esta década.

No fim da década de 70, onde musicais já eram coisa do passado e eram completamente negligenciados pelo público, um milagre aconteceu ao ser lançado "Grease - nos tempos da brilhantina" - o musical adolescente foi a maior bilheteria do ano (bateu até "Superman - o filme") e firmou John Travolta como um ídolo das adolescentes. Infelizmente, esse foi um caso isolado de musicais vindo à tona, porém quase trinta anos mais tarde, "High School musical" reviveu o mundo de adolescentes de colegial cantantes, tornando-se uma febre entre crianças e pré-adolescentes. Aproveitando o gancho deixado por "High School Musical", "Hairspray" retorna com vários colegiais cantando do começo ao fim, mas é mais bem humorado e bem executado que seus predecessores.

Anos 60, os tempos estão mudando, os cabelos estão subindo e ficando cada vez mais rígidos por causa do laquê (hairspray, em inglês) e a segregação racial é um dos assuntos mais quentes da época. Nesse cenário que se passa "Hairspray", a história de Tracy Turnblad (Nikki Blonsky), uma garota alguns (muitos) quilos acima do peso e com alto-astral de tamanho equivalente, cujo sonho é ser integrante do grupo de adolescentes que dançam no Corny Collins Show (corny, em inglês quer dizer "piegas"), um programa de televisão local que todo jovem assiste. Sua igualmente "cheinha" mãe, Edna (John Travolta), não sai de casa há mais de uma década e é casada com Wilbur (Christopher Walken), dono de uma loja de artigos de pregar peças. Para dificultar o caminho de Tracy é necessária a inserção dos vilões, Velma Von Tussle (Michelle Pfeifer) e sua filha Amber (Brittany Snow), as "rainhas" do Corny Collins Show.

Ano passado, "Dreamgirls" mostrou a luta de um grupo de negros enfrentando um mercado prominentemente branco e conquistando espaço no mundo da música e na sociedade. Em "Hairspray", o tema de segregação racial é apenas um tópico secundário mas, estranhamente, é apresentado de forma muito mais eficiente que seu predecessor. No programa "Corny Collins Show" apenas jovens brancos dançam, e é reservado um dia a cada mês em que apenas os negros aparecerem (o "Negro Day"). Em "Dreamgirls", não é feito nenhum tipo de demonstração pública pedindo direitos iguais a pessoas de cor, enquanto isso gera boas cenas em "Hairspray". Infelizmente o mundo não funciona como o que acontece no filme em que, no fim, todo mundo acaba se aceitando independente das diferenças, mas pelo menos ele mostra que havia algo errado e não faz vista grossa aos acontecimentos vergonhosos da nação.

A carreira de John Travolta é uma das mais interessantes do povo de Hollywood, sendo que desde os anos 70 ele se mantém sempre conhecido, mesmo com todos os altos e baixos de sua trajetória. Depois do estrondoso sucesso de "Embalos de sábado a noite", Travolta tornou-se o padrão de dançarino da época, e com "Grease" apenas confirmou sua popularidade. No começo dos anos 80, ele cometeu o cúmulo da breguice e mau gosto ao dançar besuntado em óleo em "Os embalos de sábado a noite continuam", e sua carreira quase foi para o brejo. Depois de vários filmes pequenos, ele voltou com tudo em "Pulp Fiction" e poucos anos depois ele cometeu o pior erro de sua carreira ao realizar o péssimo "A reconquista". Com muito esforço ele continua trabalhando em diversos projetos, na maioria pequenos, mas em "Hairspray" ele se superou e fez uma atuação digníssima de pelo menos indicação ao Oscar de ator coadjuvante (já é tempo de começar a fazer apostas!) ao interpretar a dona-de-casa obesa e extremamente simpática. Três décadas podem ter se passado, mas seu talento não mostra sinais de envelhecimento, comprovando que seu território é o canto e a dança.

Pode parecer questionável o fato de Travolta ter sido escolhido para o papel de Edna, mas em todas as encarnações de "Hairspray" essa personagem foi interpretada por um homem (Harvey Fierstein na versão da Broadway) ou um travesti (Divine, na versão cinematográfica de 1988). Só de ver Travolta coberto de maquiagem e parecendo uma mulher já proporciona boas doses de riso ao assistir o filme, e ao dançar, mesmo entupido de enchimento para parecer mais gordo, ainda parece o mesmo jovem de trinta anos atrás.

Praticamente todo o material publicitário mostra Travolta como atração principal, mas o destaque pra mim foi a personagem (e atuação, principalmente) de Michelle Pfeifer como vilã. Totalmente caricata, ela parece uma mistura de miss (título que ela orgulhosamente canta em determinada cena) e vilão de desenho da Disney, sendo hilária com suas trapalhadas e completamente ineficiente em seus planos absurdos. Suas falas e suspeitas beiram o absurdo, quando ela acusa Tracy de ser comunista apenas porque a jovem é pró-integração de brancos e negros. Igualmente merecedora de elogios é Nikki Blonsky que irradia a tela com sua alegria, com um sorriso que só poderia pertencer à Xuxa trabalhando na Disney. Quem não ficar com vontade de bater palmas enquanto ela caminha alegremente pelas ruas cantando "Good morning, Baltimore" ou não abrir um sorriso ao vê-la na loja de roupas de tamanhos especiais, necessita verificar seu nível de mau-humor.

"Hairspray" tem tudo que precisa para fazer sucesso: uma história bem divertida, um elenco de primeira e uma trilha sonora contagiante. Com tudo isso, meu sorriso permaneceu mais firme que os cabelos no filme.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

O MAIOR ESPETÁCULO DA TERRA

O Maior Espetáculo da Terra (The Greatest Show on Earth, 1952)
Dirigido por Cecil B. DeMile
Por Matheus Mocelin Carvalho

Para as gerações mais recentes, quando o circo é mencionado a primeira relação que deve ser feita é com os espetáculos pirotécnicos e acrobáticos de grupos como o Cirque Du Soleil. Para gerações passadas, as imagens relacionadas ao circo são de inocência e nostalgia: o grande espetáculo chegando à cidade, filas enormes de famílias agrupadas para terem a chance de ver um leão ou um tigre de verdade, crianças com a boca cheia de algodão doce e a grande lona abrigando palhaços e malabaristas. Apesar da atual decadência da arte circense, é este tipo de espetáculo que O Maior Espetáculo da Terra nos remete, de uma época onde o circo à moda antiga era uma grande atração. O filme foi dirigido pelo grande Cecil B. DeMille, conhecido por seus épicos grandiosos como Sansão e Dalila e Os Dez Mandamentos. Apesar de fugir do cenário bíblico de época, O Maior Espetáculo da Terra pertence à mesma categoria de filme espetáculo (como o próprio título diz) dos outros dois. De fato, ele foi popular o bastante na época para ganhar o Oscar de Melhor Filme de 1952, algo que hoje é considerado um dos maiores erros da Academia.

Acompanhado de uma pomposa narração feita pelo próprio DeMille, somos apresentados a uma equipe do circo Ringling Bros. and Barnum & Bailey. Brad Braden (Charlton Heston) é o durão gerente do circo que vive pelo seu trabalho (“Você tem serragem nas veias” lhe dizem). Ele convence os chefões do espetáculo que este deve se apresentar por uma temporada completa, para a alegria de seus integrantes. Entre estes encontramos Holly (Betty Hutton), a trapezista da equipe que tem um flerte amoroso com Brad, e o palhaço Buttons (James Stewart), que apesar de ser adorado por todos possui um passado misterioso. Brad comunica que, para aumentar a popularidade do circo, irá contratar o Grande Sebastian (Coronel Wilde), um trapezista cuja fama deve assegurar a venda de ingressos. Holly, que estava disposta a se apresentar no picadeiro central, não se agrada com a idéia de ter de dividir a atenção do público, se mostrando disposta a fazer de tudo para ser o núcleo dos aplausos. O que ela não contava é que ela iria cair sob o charme de Sebastian, e enquanto os dois travam uma batalha no picadeiro, Holly também tem que cuidar para não deixar Brad ser encantado por sua rival Angel (Gloria Grahame).

Com um enredo tão simples e em vezes até medíocre, é uma surpresa que O Maior Espetáculo da Terra também tenha ganhado o Oscar de Melhor História (precursor do prêmio de Melhor Roteiro Original). O melodramático triângulo amoroso parece ser apenas uma desculpa para unir todas as inumeráveis cenas de picadeiro, com os rasos personagens recebendo pouca atenção, especialmente o palhaço interpretado por James Stewart que tinha o potencial para se tornar o mais interessante deles. Charlton Heston aparece em seu primeiro papel de destaque e divide a atenção da heroína com o canastrão Coronel Wilde. Seu Brad Braden é o único personagem que parece realmente ser apaixonado pelo seu trabalho no circo – ainda que esta paixão seja mais de um ponto de vista administrativo e megalomaníaco do que artístico, e de uma condição do roteiro do que da atuação do ator. Quanto ao resto dos personagens, eles são apresentados como trabalhadores e esforçados, mas não existe entre eles a preocupação de criar a mágica e a ilusão do circo. Todos seus interesses parecem ser meramente interessados nos olhso do público (ao menos até os momentos finais), como Holly e seu desejo de ocupar o picadeiro central. Por não entrar ilustrar melhor tais detalhes e por fugir de mostrar a hierarquia entre os profissionais por trás da grande lona, O Maior Espetáculo da Terra falha ao tentar apresentar uma visão dos bastidores da vida circense.

Como já mencionado, a produção se destaca na categoria de “cinema espetáculo”, e sua maior intenção parece ser apresentar o circo na tela grande. Intercalado em meio ao ralo enredo (ou seria ao contrário) são diversas cenas em que vemos o mundo circense ganhar vida em “glorioso Technicolor”. Em uma enorme parada de cores e vestuários suntuosos, vemos trapezistas saltando sobre a platéia, carros alegóricos cruzando o picadeiro e até mesmo alguns números musicais. Feito em associação com o verdadeiro circo Barnum and Bailey, o filme se destaca no quesito de produção, dando uma autêntica ilusão de como era um espetáculo circense da época (ao menos um de alto orçamento). De fato, DeMille parece tão preocupado com a sedução visual que a maior parte da exagerada duração do filme (152 minutos) é gasta com tais cenas. Para criar alguma tensão nos momentos finais, um personagem surge do nada afim de alguns problemas para o grupo, mas tudo soa apenas como mais uma manobra calculada do roteiro.

Apesar de não ser um filme verdadeiramente ruim, o fato de ter ganhado o Oscar de Melhor Filme colocou O Maior Espetáculo da Terra na posição número um de várias listas de “piores filmes a terem ganhado o Oscar”. Ainda que tais afirmações sejam sempre discutíveis dependendo da ótica sob a qual o filme é analisado, a produção de DeMille é um deleite aos olhos como um picadeiro colorido, mas oco como uma lona vazia. Para melhores filmes ambientados no mundo circense, procure O Circo de Charles Chaplin, Monstros de Tod Browning ou até mesmo Dumbo de Walt Disney.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

SINFONIA DE PARIS

Sinfonia de Paris (An American in Paris, 1951)
Dirigido por Vincente Minnelli
Por Flávio Brun

Paris: nenhuma outra cidade no mundo seria tão adequada para servir de cenário para um filme visualmente estonteante, e foi a escolha perfeita para o grande musical de 1951 do diretor Vincente Minnelli. A cidade-luz esbanja charme, elegância e romantismo nessa belíssima produção, mesmo que a Paris usada esteja localizada nos estúdios da MGM.

A importância histórica de "Sinfonia de Paris" não pode ser ignorada. Apesar de simples, e por vezes até sem graça, ainda assim o filme foi responsável por uma revolução na forma de se fazer musicais na época. Em 1948, o filme inglês "Os sapatinhos vermelhos" inovou ao apresentar um balét de quinze minutos no meio da narrativa, e três anos mais tarde, "Sinfonia de Paris" incorporou a idéia de um grande número musical ao cinema estadunidense, ao pôr um espetáculo de dança grandioso (com dezesseis minutos!) como forma de encerramento do filme. A idéia deu tão certo que veio a ser usada em praticamente todos os musicais da década como, por exemplo, o fantástico "Broadway Mellody" de "Cantando na chuva", entre inúmeros outros.

O responsável pela criação do número símbolo do filme foi Gene Kelly, talvez o maior dançarino que as telas do cinema já viram. Seu estilo de dança é tão fluido que chega a nos dar a impressão de que sair dançando em meio às ruas é algo natural de se fazer. Tão bem sucedida foi a inserção do balé ao fim da película que rendeu inúmeros prêmios à produção, incluindo o Oscar de melhor filme, e um prêmio honorário a Gene Kelly por sua contribuição à sétima arte na área de dança - merecidíssimo, pois como mencionado anteriormente, seu trabalho aqui estabeleceu um padrão na forma de se fazer musicais.

Apesar da importância histórica, esse não é um filme perfeito, muito pelo contrário, sendo que o principal defeito se encontra na história em si - vazia e por muitas vezes desinteressante. Os personagens são pouco explorados e bastante estereotipados. Jerry Mulligan é o típico personagem de Gene Kelly: soldado, alegre e sempre cantando e dançando. Lise Bouvier (personagem de Leslie Caron) é a francesa charmosa e inocente que despropositalmente rouba o coração de Jerry, que não sabe que ela está para se casar com Henri Buriel (Georges Guetary), um amigo de Mulligan. Um dos poucos personagens interessantes é Milo Robers (Nina Foch), uma milionária que resolve dar uma ajuda monetária a Jerry, mas politicamente correta a ponto de não pedir (explicitamente) nada em troca. A história é simples (até demais) e subdesenvolvida no filme, servindo apenas de cabide para um grupo de canções e danças, sendo que poucas delas são memoráveis e bastante descartáveis. Ao término do filme, ficamos encantados com o grande balé, que não tem um significado importante para a narrativa, mas que ainda assim encanta, porém logo a seguir, na conclusão da história, o destino dos personagens toma um rumo tão implausível que é difícil crer que está acontecendo, apesar de estar diante de nossos olhos. Além do mais, Milo é totalmente esquecida na conclusão. O resultado é sairmos boquiabertos: pela dança e pelo encerramento irreal.

Mesmo com tantos defeitos narrativos, ainda assim há alguns pontos interessantes. A forma de apresentação dos personagens no começo do filme é bem criativa, com eles próprios dando suas descrições. Como diz o velho ditado, "conhece-te a ti mesmo que eu me conheço bem". Outro ponto positivo é a presença sempre marcante de Gene Kelly. Ele pode não ser o mais talentoso dos atores, mas seu carisma e talento na sua área compensam a falta de poder dramático.

A escolha de Leslie Caron, entretanto, não foi a mais acertada para o papel. Lise é para ser uma jovem linda, capaz de fazer os homens caírem a seus pés à primeira vista, porém Leslie é apenas charmosinha, e não tem o sex appeal que a personagem necessitava. Não que a atriz ideal seja um sex symbol como Marilyn Monroe, e sim alguém mais visualmente atraente que Caron.

Como sempre, o Oscar é uma premiação controversa, e é impossível agradar a todos. No ano de 1951, o grande vitorioso foi "Sinfonia de Paris", com seis estatuetas (o filme "Um lugar ao sol" recebeu o mesmo número de Oscar naquele ano). O fator merecimento é questionável, principalmente se analisarmos os concorrentes ao prêmio daquele ano. Os principais eram "Uma rua chamada pecado" e "Um lugar ao sol", e ambos eram mais aptos a saírem vitoriosos que "Sinfonia de Paris". "Uma rua chamada pecado" possuía o que o vencedor não tinha: uma trama elaborada, com um roteiro magnífico e poderosas atuações de todo o elenco, e o mesmo se aplica a "Um lugar ao sol". O único diferencial de "Sinfonia de Paris" se encontra em aspectos técnicos, como a bela fotografia no glorioso Technicolor (os outros dois concorrentes mencionados foram filmados em preto e branco), a perfeição visual de cada tomada característica dos filmes de Minnelli além, é claro, do tão mencionado número musical que revolucionou o cinema musical da época.

Praticamente todas as boas idéias de "Sinfonia de Paris" estão presentes em outros filmes superiores, porém é válido assisti-lo como marco histórico e um ponto de referência em matéria de como se faz um número musical. Para ver Gene Kelly em sua melhor forma, assista "Cantando na chuva". Para ver um belo musical de Minnelli, o recomendado é "A roda da fortuna". Mas se o tempo for curto e quiser unir bons aspectos de ambos, o recomendado é "Sinfonia de Paris". O resultado pode não ser tão satisfatório, mas no geral, diverte.