quinta-feira, 28 de junho de 2007

TEMPOS MODERNOS

Tempos Modernos (Modern Times, 1936)
Dirigido por Charles Chaplin
Por Matheus Mocelin Carvalho

“Levante a cabeça - nunca desista! Nós iremos nos virar!” diz Charles Chaplin ao final de Tempos Modernos, uma cena de caráter tão pungente quanto otimista, na medida em que o Vagabundo e sua companheira caminham em direção ao horizonte incerto. Infelizmente para Chaplin, Tempos Modernos selou o futuro do veículo que o trouxera fama mundial: o cinema mudo. Assistir ao filme não significa apenas presenciar o último suspiro de uma forma de arte extinta, mas também a última chance do público de ver o comediante encarnando seu personagem mais famoso, o eterno Vagabundo, que seria aposentado após esta produção (ainda que um barbeiro judeu em O Grande Ditador apresente mais do que uma leve semelhança com o Vagabundo). Assim como seu criador, o personagem teria problemas em se adaptar a um mundo onde as risadas deixam de ser a trilha sonora do humor e os efeitos sonoros ditam a ordem. Tempos Modernos representa Chaplin ao mesmo tempo em sua forma mais pura e sua forma mais política, esta última que seria favorecida em suas produções faladas nos anos a seguir.

A gênese de Tempos Modernos veio após um tour de dezoito meses feito por Chaplin através da Europa, onde conheceu personalidades, discutiu problemas sociais e expressou sua visão a respeito do uso das máquinas como algo a ser usado a favor do homem ou algo que poderia lhe trazer imensuráveis prejuízos. Ao voltar para os EUA, ele encontrou uma nação abatida pela Grande Depressão, onde o desemprego em massa crescia a cada dia e onde a máquina reinava sobre seus trabalhadores explorados e mal pagos. Embutido de uma temática política, cada fotograma de Tempos Modernos reflete o ponto de vista de Chaplin sobre a modernização das empresas, a produção em massa (uma crítica quase direta a Henry Ford), o desemprego e a luta do proletariado contra seus empresários capitalistas. Ainda que não assumindo totalmente uma face pró-marxista, seus ideais aqui representados certamente estabeleceram alguma relação com as acusações de comunismo que recebeu nos anos cinqüenta, resultando em sua reclusão para a Europa.

Ao início de Tempos Modernos (“Uma história sobre a indústria, a iniciativa privada – humanidade em busca da felicidade” dizem os créditos iniciais contrapostos a um relógio), um paralelo pouco sutil mostra a imagem de um rebanho de ovelhas em movimento sendo dissolvida na imagem de um grupo de trabalhadores marchando rumo ao trabalho. Numa das grandes empresas onde as máquinas reinam, um peculiar operário (Chaplin) tem a função de apertar porcas em uma linha de montagem em série. Supervisionando a produção, o presidente da companhia (Allan Garcia) faz uso de monitores gigantes espalhados pela fábrica para controlar seus empregados (o filme prevê o Big Brother com cerca de cinco décadas de antecedência). Explorado à exaustão, sendo até mesmo cobaia de um experimento em como alimentar funcionários de forma mais rápida, o pobre Vagabundo acaba sofrendo um colapso nervoso. Sendo engolido por uma das máquinas (em uma das cenas mais antológicas do cinema), o baixinho descontrolado se torna o responsável por uma série de incidentes que o levam diretamente para a prisão.

Atrás das grades, o agora desempregado trabalhador acaba acidentalmente se tornando um herói entre os policiais, recebendo sua própria cela e uma série de regalias. Já em outra parte da cidade, uma jovem pobre (Paulette Goddard, mais uma das inúmeras companheiras de Chaplin na vida real) rouba para alimentar seu pai e suas duas irmãs. Quando o patriarca da família é morto, ela se vê obrigada a fugir para escapar do juizado de menores. Solto da prisão por boas maneiras, o Vagabundo agora se encontra pelas ruas a procura de um emprego, sentindo falta de sua vida sem preocupações na cadeia. Em outra de uma série de coincidências, ele e a garota acabam se encontrando, vagando juntos em busca de um lar e de um trabalho.

Graças ao talento de seu criador, Tempos Modernos funciona em diversos níveis: além de ser uma carta de protesto de Chaplin colocada em celulóide, a obra demonstra ser não apenas eficaz crítica à industrialização, mas acima de tudo um ótimo entretenimento. Sendo exibido ainda hoje em escolas e programas de treinamento, o filme continua a ser relevante em tempos atuais, onde a globalização e a tecnologia são as principais causas do desemprego estrutural. Caracterizando os problemas sociológicos da década de 30, Tempos Modernos apresenta funcionários explorados por seus patrões, escravos de um sistema capitalista onde o relógio dita as ordens do dia. O imperialismo das máquinas não apenas colabora com o desemprego de um país em crise, mas também torna mecânico o trabalho de seus operários: em uma linha de montagem, o Vagabundo e seus companheiros são ordenados a passar horas diárias executando a mesma função repetidamente. As lacunas existentes entre as funções do homem e as funções da máquina se tornam cada vez mais abstratas a ponto de, em uma peculiar comparação, o pobre trabalhador ser engolido pela máquina onde trabalha, sendo arrastado por entre as engrenagens da mesma - o homem faz parte da máquina, mas a mesma não pode funcionar sem a mão humana. É curioso observar como o único papel da tecnologia no filme é extrair proveito dos indivíduos, a exemplo de quando o Vagabundo é obrigado a testar uma engenhoca que supostamente diminuiria o tempo de refeição dos operários.

Através de suas criações, Chaplin sempre teve o poder de estabelecer uma ligação direta com o grande público, sendo que quando Tempos Modernos foi produzido, este era composto em sua maioria por pessoas desempregadas ou então com grandes dificuldades financeiras. No caso dos personagens do filme, o caráter dos mesmos é muitas vezes definido por seu status quo: enquanto o presidente da companhia é um homem autoritário disposto a explorar seus trabalhadores ao máximo de suas forças, os assaltantes que roubam a loja de departamentos apenas o fazem por não terem o que comer. O roubo também é justificado através da personagem da menina das ruas, mais uma das páreas da sociedade que sofreu diretamente os efeitos da depressão. Interpretada com perspicácia por Paulette Godard, ela é a companheira ideal para Chaplin, responsável por muitos dos momentos tenros que são característicos da obra do diretor. No entanto, o que faz todas as críticas sociais funcionarem tão bem são suas intersecções com momentos de humor, instigando as percepções cognitivas do público sem subestimá-las. Assistir a este filme acompanhado de uma platéia é o bastante para atestar a eficiência do humor chaplinesco mais de setenta anos após seu lançamento original.

Produzido quase uma década após o advento de som no cinema, Tempos Modernos foi planejado originalmente como um filme falado. Chaplin, no entanto, resolveu ser fiel às suas origens, e ainda que o filme apresente uma trilha musical (composta por ele mesmo) e alguns efeitos sonoros, este é, em sua essência, um filme mudo. Como seus filmes futuros provariam, o cineasta não lidava tão bem com as palavras quanto lidava com uma narrativa baseada em intertítulos e diálogos sugeridos. Aqui, a dialética de Chaplin é demonstrada através do humor, não apresentando a necessidade dos discursos abertos e inflamados que veríamos no ótimo O Grande Ditador e no mediano Um Rei em Nova York. Apesar da tentação de dar voz ao personagem, uma versão falada do Vagabundo provavelmente não se mostraria verdadeira; Perderia sua qualidade universal através da barreira do idioma e também abstrairia a sua expressiva comunicação em pantomima. Deste modo, a única vez em que o Vagabundo possui voz neste ou qualquer outro filme é durante sua clássica apresentação como cantor no café, sendo que as letras da mesma são escritas em um idioma inexistente e incompreensível. É notável que, com exceção desta cena, os únicos momentos onde ouvimos diálogos no filme apresentam estes processados através de algum veículo eletrônico: o chefe da fábrica através do monitor, o vendedor eletrônico que apresenta a máquina de alimentação e um programa noticiário no rádio. Assim como esses aparelhos demonstram a opressão da tecnologia sobre o trabalhador e o homem comum, Chaplin (deliberadamente ou não) também sintetiza a soberania do som sobre o cinema mudo. Felizmente para o público, as obras de Chaplin teriam uma longevidade muito maior do que a arte que o consagrou.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

O SHOW DEVE CONTINUAR

O show deve continuar (All that jazz, 1979)
Dirigido por Bob Fosse
Por Flávio Brun

"É hora do show, pessoal!"

A frase acima, dita tantas vezes ao longo de "O show deve continuar", expressa com perfeição a experiência de se assistir ao filme - um show. O diretor Bob Fosse volta ao cinema sete anos após seu genial "Cabaret" com um musical semi auto-biográfico sobre os exageros cometidos em sua vida no show business.

O filme se abre com John Gideon (Roy Scheider), um diretor de cinema e peças de teatro, em seu começo de dia: uma fita no rádio (o filme foi feito antes do advento do CD) dá um tom operático a sua vida pontuada por excessos, demonstrado por pílulas espalhadas pelo banheiro e seu cigarro sempre na boca (inclusive no banho). A palavra que resumiria a vida de Gideon é simplesmente "excesso": trabalho em excesso (não que ele reclame disso, ele faz por prazer), mulheres em excesso, stress em excesso. Tamanhos exageros o levam a ser uma pessoa basicamente solitária e o fazem flirtar com a morte - interpretada no filme como uma bela mulher de branco por Jessica Lange.

O ponto mais comentado na comunidade de críticos é o fato do filme ser semi auto-biográfico, porém mesmo não sendo, ainda assim é um deleite a todos, independente de gostar de musicais ou não. Em "O show deve continuar", nenhum personagem pára o que está fazendo e começa a cantar (contrário a maioria dos musicais pré-anos 70). Todos os números de canto e dança aparecem em meio às alucinações ou imaginação de Gideon - de forma similar à forma em que foi feito, mais de 20 anos depois, em "Chicago" que, por sinal, foi criado por Fosse para a Broadway (o título original de "O show deve continuar" se refere à musica de abertura de "Chicago").

Uma das indicações do filme no Oscar de 1979 foi de melhor ator para Roy Scheider, e foi uma terrível injustiça o ator ter perdido a estatueta. Scheider era muito popular na década de 70, e estava presente no filme vencedor do Oscar de melhor filme de 1971 ("Operação França") e seu papel mais conhecido provavelmente é o chefe Brody de "Tubarão", porém nenhum desses papéis se compara ao John Gideon representado por Scheider em "O show deve continuar". Algo muito comum é assistir a um filme e pensar "Eu já vi esse ator/atriz em algum lugar", porém Scheider criou um personagem tão convincente, que nada lembra seus trabalhos anteriores, tornando sua interpretação um exemplo a ser seguido. É raro ver uma atuação que não é apenas uma pessoa recitando palavras, e sim um compromisso de corpo e alma, em que o ator na tela é uma encarnação de seu personagem, um ser tri-dimensional que permanece conosco após o filme e com quem é facil de se identificar de alguma forma.

Munido de uma trilha sonora de primeira grandeza, uma das primeiras canções do filme, considerada por muitos como sendo a mais marcante, é "On Broadway", onde Gideon escolhe o elenco de sua nova produção e dezenas de pessoas dançam ao som contagiante da canção. O resto das músicas são encaixadas no contexto do filme, e aquelas cujo conteúdo é mais relevante para o filme, são as que se passam na imaginação do diretor onde os outros personagens expressam suas idéias em forma de canto - a parte em que isso se exemplifica seria durante a cirurgia, em que assiste as mulheres de sua vida (a ex-esposa, filha e namorada) falam de seus erros para com elas. Mesmo depois dessa experiência, o personagem não muda e continua com seus excessos. Aparentemente, sua conduta é apenas uma forma de conquistar o anjo da morte e satisfazer seus desejos físicos. Seu adeus à vida é feito da forma mais condizente possível ao seu estilo de vida: em um mega-espetáculo com uma grande platéia e em um grande número musical e no fim dele ele vai de encontro à bela mulher que para ele representa a morte.

Uma das cenas mais memoráveis do filme é a apresentação de "Take off with us / Air-otica", uma demonstração magnífica da beleza do corpo humano em movimento. Nessa cena, Fosse esbanja seu estílo característico de coreografia, com movimentos sensuais sem nunca parecer vulgar, um exemplo a ser seguido por aqueles que se dizem cineastas mas não têm um pingo de estilo.

"O show deve continuar" é um filme vencedor, e diversas premiações ao redor do mundo o consagraram na época nas mais diversas áreas, e isso comprova que este é um filme extremamente bem feito em todos os aspectos. Como a premiação mais badalada é o Oscar, este entra na imensa lista de injustiças da premiação, sendo infinitamente superior ao vencedor do prêmio de melhor filme daquele ano (a saber: "Kramer versus Kramer") e em nível equivalente a outro concorrente, "Apocalypse now". Bob Fosse morreu jovem alguns anos após a conclusão desse filme, em mais um caso em que a vida imita a arte, nos privando de mais grandes obras de um grande diretor. Fosse pode ter ido embora cedo, mas todo seu sacrifício não foi em vão, e todo aquele jazz ficará imortalizado enquanto houverem pessoas de bom gosto de cinema.

domingo, 10 de junho de 2007

DANÇANDO NO ESCURO

Dançando no Escuro (Dancer in the Dark, 2000)
Dirigido por Lars von Trier
Por Matheus Mocelin Carvalho

Selma (Björk) é uma jovem imigrante da Tchecoslováquia que se mudou para os Estados Unidos com o propósito de criar seu filho Gene (Vladica Kostic). Vivendo uma vida de pobreza, Selma trabalha em uma fábrica de esmaltados junto de sua melhor amiga Kathy (Catherine Deneuve) e vive em uma pequena casa alugada no quintal do policial Bill Houston (David Morse) e de sua esposa Linda (Cara Seymour). Desde pequena, Selma tem uma fascinação por musicais americanos, sendo que diversas vezes enquanto trabalha ela imagina fazer parte de um. No momento, ela se prepara para representar Maria em uma montagem de A Noviça Rebelde. Infelizmente para Selma, se torna cada vez mais difícil operar as máquinas da fábrica e ensaiar seus passos de dança, pois ela possui uma doença degenerativa hereditária que a torna graduadamente cega. Sua amiga Kathy é a única que sabe deste fato, e faz o possível para ajudá-la. Em um momento de fraqueza, seu vizinho Bill lhe confidencia que está falido e que não tem coragem de contá-lo à esposa. Selma então revela que têm economizado dinheiro durante anos para uma cirurgia que seu filho deve fazer para que não fique cego como ela.

Para aqueles que não assistiram ao filme, este é o máximo que se deve ler a respeito de seu enredo. Mas, apenas por tais pontos narrativos, não é difícil prever que Dançando no Escuro se trata de um dos grandes melodramas já colocados na tela. Este motivo pode ter afastado alguns espectadores mais cínicos, mas para aqueles que souberem abraçá-lo, o filme pode se tornar uma experiência difícil de ser esquecida. Para que isto ocorra, é necessário desde o início acreditar na história e no universo que Lars von Trier apresenta diante de seu espectador. Um mundo povoado por pessoas frias e traiçoeiras, onde situações trágicas são levadas ao extremo. Tendo em mente as intenções do diretor, é possível se deixar levar mais facilmente pela história da infeliz Selma, mesmo estando ciente das desavergonhadas tentativas de manipular o espectador.

Dançando no Escuro é carregado pela muito comentada atuação da cantora Björk, que devido aos seus desentendimentos com Trier e o cansaço gerado pela produção, jurou nunca mais aparecer em outro filme. Björk também escreveu as canções do filme, das quais ela interpreta todas. Apesar de não ser grande fã do estilo da cantora, não posso negar seu talento como atriz iniciante. Nas mãos de Lars von Trier, Björk acaba se tornando o maior instrumento utilizado pelo diretor para manipular a platéia, como se muitas vezes ele estivesse implorando para que esta se emocionasse. Não basta Selma ser cega, ter um filho fadado ao mesmo destino e não ter dinheiro nem para lhe comprar uma bicicleta no aniversário: ela tem que ser interpretada com uma inocência e pureza quase infantil, que às vezes nos levam a perguntar se seus problemas vão além da cegueira. Assim como a personagem Grace do superior Dogville, Selma se encontra em um mundo vil repleto de pessoas de caráter desprezível, com ela sendo a única totalmente inocente.

Um dos motivos dos filmes de Lars von Trier não serem tão recebidos em terras norte-americanas é seu explícito desgosto pela terra do tio Sam. Em Dançando no Escuro podemos ver isto com clareza: Selma é uma imigrante de alma pura que vai aos EUA a procura de oportunidades, mas tudo o que encontra é pobreza e hostilidade. Seus únicos amigos e as únicas pessoas que não a traem (interpretados por Catherine Deneuve e Peter Stormare) também são estrangeiros. Enquanto isso, o policial local interpretado por David Morse é o catalisador de suas desgraças, enfatizadas pela crueldade com que as autoridades americanas a tratam. É interessante que, o único momento em que vemos uma bandeira americana no filme (que, apesar de se passar no estado de Washington, foi filmado na Suécia) é após um evento que sinaliza o início da queda de Selma.

Lars von Trier foi um dos idealizadores do movimento Dogma95, e Dançando no Escuro nos possibilita ver em prática algumas das técnicas pregadas pelo diretor. Em uma decisão corajosa, Trier rodou o filme utilizando câmeras digitais manipuladas à mão, fazendo uso de uma paleta de cores arrastadas e iluminação natural. O tom melancólico é acentuado pelo discreto uso do som, a edição picotada e a oscilação da câmera. Quando Selma tem seus devaneios e vemos os números musicais como ocorrem em sua mente, o filme passa a utilizar planos geralmente estáticos onde as cores explodem na tela remetendo aos musicais em Technicolor da MGM filmados nos anos 40 e 50. Os números musicais também são inspirados nos clássicos da mesma época, com figurantes se unindo em grandes coreografias.

Vale notar que Dançando no Escuro foi lançado um ano antes do grande retorno dos musicais com Moulin Rouge. O diretor parece estar ciente de que muitos dos espectadores possam não estar preparados para o formato musical – tanto que, em um momento de auto-sátira, o personagem de Peter Stomare diz não entender o fascínio de Selma por musicais, pois as pessoas simplesmente saem dançando e cantando, algo que não acontece na vida real. Trier controla o “problema” encenando todos os números musicais na mente da personagem, artifício que seria repetido em Chicago. De fato, seria difícil acreditar que os interlúdios musicais de Björk fizessem parte do mesmo mundo sombrio e tenebroso do qual sua personagem vive. Um mundo que pode ser tão difícil para o espectador vivenciar quanto para os próprios personagens, mas que ao final se mostra uma experiência difícil de ser replicada – para o bem ou para o mal.

terça-feira, 5 de junho de 2007

O FABULOSO DESTINO DE AMÉLIE POULAIN

O fabuloso destino de Amélie Poulain (Le fabuleux destin d'Amélie Poulain, 2001)
Dirigido por Jean Pierre Jeunet
Por Flávio Brun

Se há uma palavra que possa descrever "O fabuloso destino de Amélie Poulain", essa palavra é "encantador". Uma vez introduzido ao mundo mágico de Amélie, é impossível não abrir um sorriso e se encantar com essa história regada de pequenos prazeres que acaba se tornando uma deliciosa experiência raramente igualada, e ver que as pequenas ações de uma pessoa podem fazer uma grande diferença nas vidas de quem a cerca.

Ao iniciar o filme, já temos conta que essa não é uma obra convencional. Os primeiros minutos contam de uma série de eventos que aconteceram no mesmo instante, como uma mosca pousando no meio de uma rua, um homem apagando um endereço de uma agenda e também um espermatozóide fecundando um óvulo, o que nove meses mais tarde viria a se tornar Amélie. Pessoas acostumadas ao mundinho de Hollywood normalmente se assutam ao ver algo diferente, e podem acabar desencorajadas por não entender do que se trata tantos fatos em tão pouco tempo. Apenas deve-se esperar mais alguns minutos para se acostumar com a forma da narrativa e, uma vez dentro do mundo de Amélie, ficamos presos de tal forma que torna-se impossível deixar de se maravilhar com os acontecimentos apresentados ao longo da película.

Amélie gosta de olhar pra trás no cinema e ver as expressões do público. Seu pai gosta de engraxar os sapatos e odeia quando seu calção gruda ao sair da piscina. Sua mãe gosta de organizar a bolsa e não gosta quando o rosto fica marcado pelo travesseiro. Pode parecer estranho descrever as pessoas pelo que elas gostam ou desgostam, mas é assim que somos introduzidos aos diversos personagens da história, o que ressalta um dos elementos diferenciais do filme - a ênfase aos pequenos detalhes que são tão ignorados mas que no fim das contas fazem toda diferença. Afinal, quem não se sente realizado por simplesmente jogar pedrinhas no rio ou estourar plástico-bolha?

Em sua infância, Amélie vive isolada das outras crianças, por não poder ir à escola, e vive em um mundo imaginário repleto de fantasia, com nuvens em formato de coelhos e ursos, e em que a vizinha em coma resolveu dormir todo seu sono de uma vez só. Anos mais tarde, Amélie torna-se garçonete e sua vida muda após encontrar uma latinha escondida em seu apartamento. Decidida a encontrar o misterioso dono da latinha, Amélie começa sua busca. Ao encontrar, ela fica tão realizada com o efeito que causou na vida do senhor o qual a latinha pertencia, que resolve se dedicar a fazer pequenos gestos capazes de tornar as pessoas mais felizes. Totalmente altruísta, Amélie acaba esquecendo de si mesma, sendo lembrada disso ao encontrar um rapaz que coleciona fotos tiradas em cabines automáticas, e começa a elaborar estratégias para chamar sua atenção.

A história é contada de maneira tão fluida, que torna o filme uma experiência única, dando a impressão ao término de que passamos duas horas fazendo as coisas gostosas da vida que o filme tanto preza. A história é cheia de ramificações, o que pode torná-lo um pouco confuso se não prestar atenção. A atenção dada aos pequenos detalhes da narrativa é tamanha, o que faz com que esse seja um dos melhores roteiros dos últimos anos. Nada aparece gratuitamente no filme, e um exemplo disso é a amiga de Amélie que é comissária de bordo. Ela é apresentada no começo do filme, e aparece apenas mais uma vez perto do fim da narrativa, porém ela é responsável pela história do anão de jardim que é de relativa importância ao final da película. São todas essas nuances e detalhes que fazem com que o filme continue interessante mesmo após assisti-lo diversas vezes, e ainda dê vontade de assistir novamente.

O diretor Jean Pierre Jeunet, responsável pelo terrível "Alien, a ressurreição", volta aqui para redimir-se de seu erro. Apesar de horrível em aspectos narrativos, seu filme das criaturas assassinas do espaço possuia um preciosismo em termos técnicos admirável, e sua experiência na área mostra-se visível em cada quadro de "Amélie". A belíssima fotografia do filme é o ponto que se sobressai, com muitos efeitos digitais que acabam se mesclando de forma perfeita - aliás, essa é a forma que deveriam ser usados tais efeitos: como complemento, e não distração. A trilha sonora de Yann Tiersen é contagiante e dita perfeitamente o tom do filme - mesmo ouvindo isoladamente, funciona perfeitamente como um levantador de ânimo. Por muitos desapercebido, o departamento de mixagem de som faz um trabalho excepcional aqui, em que uma cena em especial serve como exemplo disso: quando Amélie lê as cartas da vizinha, durante cada uma há um som de fundo. Ao ler a carta montada por Amélie, os sons de cada pedaço recortado por Amélie aparece discretamente - mais um detalhe que comprova a atenção dada pelo diretor a todos os aspectos da produção.

Além de todos os aspectos técnicos e ótima história, temos Audrey Tatou. A jovem atriz parece que foi talhada especialmente para o papel, sendo capaz de transparecer a bondade, ingenuidade e timidez de Amélie como nenhuma outra atriz conseguiria. Sua atuação é de tamanha qualidade que todos os outros acabam ficando sob sua sombra. Se há algo a criticar no filme, é a atuação de alguns atores coadjuvantes que parecem um pouco cartunescos em alguns momentos (em especial a mãe de Amélie), mas em momento algum isso se torna um grande empecílho para apreciação da história - tanto que o prórpio filme possui um tom cartunesco por si só. Audrey Tatou basicamente carrega o filme sozinha, presente em praticamente todos os quadros da película, e mostra de forma única o prazer de se ver uma excelente atuação.

O material publicitário do filme tinha como chamada "Ela vai mudar sua vida" - e de fato muda. Nem a pessoa mais séria e rabugenta deve ser capaz de resistir ao charme de Amélie e acabar o filme sem sentir-se bem. Uma ótima forma de escapismo dos problemas do cotidiano e também de se descobrir que cinema não se restringe a Hollywood.