domingo, 23 de dezembro de 2007

ROCKY HORROR PICTURE SHOW

Rocky Horror Picture Show (The Rocky Horror Picture Show, 1975)
Dirigido por Jim Sharman
Por Flávio Brun

Qual é a primeira impressão que uma pessoa em sã consciência teria ao ouvir falar de um filme cujos personagens vêm de um planeta chamado Transexual na galáxia chamada Transilvânia? Provavelmente bizarro é a melhor palavra pra descrever o filme, e ele realmente é muito, mas muito bizarro mesmo. E igualmente divertido.

Quando começa o filme, há uma boca sem corpo cantando sobre ficção científica e sessões duplas de cinema. Essa é a primeira homenagem aos filmes trash de terror e ficção científica dos anos 50, em que era comum pagar a entrada e assistir dois filmes, normalmente um de baixo orçamento seguido da atração principal. Para quem é fã do gênero, apenas essa música de abertura já fornece uma boa lista de filmes a se assistir. É divertido ficar ouvindo e pensando "ah, eu já vi isso!", por mais absurdo que "isso" se refira. Eu fui um dos que saíram à busca dos clássicos mencionados - e recomendo pelo menos dois deles: "O dia em que a terra parou" (na canção diz "Michael Rennie estava doente no dia em que a terra parou") e "Planeta proibido" ("Anne Francis estrela em 'Planeta proibido', ô ô ô ôooou").

Logo após a canção de abertura e créditos, o filme começa de forma bastante inocente, com Brad Majors (Barry Bostwick) e Janet Weiss (Susan Sarandon) apaixonados cantando sobre seus planos, após a cerimônia de casamento de um casal de colegas deles. Após se tornarem noivos, eles decidem ir visitar seu ex-professor e amigo Dr. Everett Von Scott (Jonathan Adams), porém se perdem na estrada e vão parar em um castelo com aparência estranha e habitantes mais estranhos ainda. No castelo está havendo uma celebração em que o mestre do castelo, o Dr. Frank-N-Furter (Tim Curry) está prestes a dar vida a sua criatura, Rocky Horror (Peter Hinwood), seu objeto de desejo sexual. Os outros moradores do castelo são Magenta (Patricia Queen), assistente de Frank e seu irmão, Riff Raff (Richard O'Brien), o mordomo de aparência assustadora. Logo após o "nascimento" de Rocky, surge um projeto experimental de Frank, Eddie (Meat Loaf), um roqueiro gordo e feio que aparece no filme apenas para cantar uma canção (a ótima "Hot Patootie) antes de ser assassinado por Frank (uma eutanásia, de acordo com o cientista, pois "ele tinha charme, mas não tinha músculos").

A história é terrivelmente mal contruída, os efeitos especiais são piores ainda, mas esse é o modelo de filme que criou o gênero "de tão ruim é bom". Na época de seu lançamento, ele foi ignorado pelo público e encontrou seu lugar nas sessões tarde da noite em cinemas pequenos, mas cujos fãs estavam sempre lá, todas as semanas. Com o passar do tempo, esse se tornou um dos filmes mais cultuados da história, sendo o filme que passou mais tempo em cartaz de todos os tempos (creio que ele ainda está em cartaz, desde 1975). Provavelmente o que torna-o tão especial é a vibrante trilha sonora, as experiências de se assistir ele com um público tão devoto e também o tom irreverente e debochado que permanece durante toda a duração do filme.

É difícil de acreditar que esse filme conseguiu ser produzido e aprovado para exibição na época em que foi feito. Um filme com todo o tipo de material ofensivo à sociedade, com transexuais assassinos, criação de homem objeto, expressão de liberação sexual, canibalismo e muitos outros temas mais absurdos, que se não tivesse sido feito quando foi, jamais teria o mesmo efeito. A impressão que dá quando se assiste é a mesma que ocorre quando se assiste "South Park" - sempre me apanho pensando "o que diabos eu estou gastando meu tempo assistindo essa coisa tosca", mas sempre é um prazer assistir. É um dos mais divertidos guilty pleasures que o cinema já fez.

Mencionar a presença de Susan Sarandon no elenco é uma surpresa e tanto, já que hoje em dia ela é conhecida por seus trabalhos mais sérios, mas não podemos esquecer que ela fez muitos filmes ruins em sua carreira, principalmente no começo. Dessa má fase da atriz, este é o que mais se destaca, por causa da fama que ele adquiriu ao longo do tempo. Quem diria que algum dia viriam Susan apenas de lingerie cantando uma música cujo refrão é "toque em mim, quero me sentir suja". Mas o destaque mesmo vai para Tim Curry. Ele não é um grande ator, não fez nenhum grande papel em sua carreira, mas aqui dá um show de interpretação em um papel que tem que ser muito corajoso para interpretar. O Frank encarnado por Curry é apresentado de forma tão natural que é difícil duvidar que ele é uma pessoa de verdade. Curry provavelmente pensou "Já que estou no inferno, vamos abraçar o diabo", pois ele não parece nem um pouco arrependido de ter feito o papel. Qualquer outro ator teria passado o seu descontentamento com o papel em uma situação similar (exemplo é Terrence Stamp, em "Priscilla - rainha do deserto", em que seu travesti é falho e o ator não parece à vontade no papel).

"Rocky Horror Picture Show" é uma parada de homenagens a todo tipo de filme de terror, com um pot pourri de referências aos clássicos de filmes cultuados desde sua abertura até seu final. O próprio Rocky Horror é o monstro de Frankenstein do filme, assim como eles subindo na torre da RKO (para quem não sabe, RKO era um dos maiores estúdios dos anos 30) tal qual King Kong subindo no Empire States. O cabelo de Magenta ao fim da fita é igual ao da noiva de Frankenstein, outro clássico adorado pelo público e crítica, Riff Raff é o típico mordomo lacaio que anda curvado pela mansão. Para quem gosta desses clássicos do cinema, é divertido ficar "catando" as referências e vê-las de roupagem nova. O que deixa "Rocky Horror" menos interessante é seu final, cujo tom baixo destoa bastante do anarquismo do resto do filme. Falando em final, na versão americana foi cortada a música de encerramento "Superheroes", mas felizmente no DVD ela está lá presente.

Embora a experiência de se ver no cinema nas sessões da meia noite não é algo possível de fazer aqui no Brasil, ainda assim vale a pena assisti-lo numa tarde chuvosa, nem que seja para dar umas risadas e se contagiar com as músicas (duvido alguém não ficar com "Time Warp" na cabeça após o término). Se a vontade de assistir como as sessões especiais de cinema, há um extra no DvD que diz o equipamento necessário e aparecem legendas dizendo o que fazer e quando com esse equipamento. O que tem que deixar de lado é todo o preconceito e preceitos morais e divertir-se!

domingo, 21 de outubro de 2007

GREMLINS

Gremlins (Gremlins, 1984)
Dirigido por Joe Dante
Por Flávio Brun

Tradicionalmente, todos os anos o mercado cinematográfico americano é inundado de filmes de celebração dos feriados de fim de ano, carregados de espírito natalino onde tudo é feliz e bonitinho. Em 1984, essa regra foi quebrada com o lançamento de "Gremlins", um dos filmes mais anárquicos e divertidos e que tornou-se um ícone da cultura pop dos anos 80.

A pacata cidadezinha de Kingston Falls é o cenário dessa comédia de humor negro (ou seria melhor terror engraçado?) e é onde Billy Peltzer mora com sua família. Seu pai, um inventor cujas criações nunca funcionam, lhe dá de presente de natal um animalzinho peludo e bonitinho, que impressionantemente canta (ou melhor, murmura) e entende tudo que é dito. Esse animalzinho, um Mogwai ("Demônio", em cantonês) possui três regras, que se quebradas podem causar conseqüencias nada agradáveis: não molhar, não expor à luz forte e não alimentar após a meia noite. Como é de se esperar, se há regras, elas serão quebradas em algum momento, e de fato isso acontece.

O filme pode ser facilmente separado em duas partes bem distintas: do começo até os Mogwais formarem seus casulos, e desse ponto até o fim. A primeira parte é o típico filme natalino, muita neve, pessoas felizes e presentes. A segunda metade é a alma do filme, onde o espírito natalino é exorcizado por criaturas verdes que mais parecem pequenos demônios (fazendo jus ao seu nome em cantonês) e a idílica cidade de Kingston Falls torna-se um inferno para seus habitantes. Se há algo a criticar no filme é o fato de o segundo ato perder a narrativa, pois nada mais é que uma sucessão de cenas engraçadas (e muito!) e muita profanidade por conta dos Gremlins.

Na época de seu lançamento, "Gremlins" (juntamente com "Indiana Jones e o templo da perdição") foi um dos responsáveis de mudar o sistema de classificação etária usado nos Estados Unidos, por se tratar de um filme com tema pesado demais para crianças assistirem, mas também não pesado o suficiente para proibir para elas. Isso é justificado no segundo ato, quando os monstrinhos verdes saem pela cidade fazendo suas estrepolias com muita violência e profanidade - eles fumam, bebem, e matam, entre outras coisas. Outro motivo de considerar um filme "pesado" para crianças é a história de Kate (a mocinha do filme), em que ela conta o motivo de ela odiar as festas de fim de ano (algo que pode chocar até pessoas mais crescidas).

A primeira metade da história é pontuada de referências de todos os tipos de filmes. A cidade em que a história se desenrola é extremamente parecida com a cidade do filme "A felicidade não se compra", o clássico definitivo de natal (inclusive aparece uma cena desse mesmo filme no começo). Vários filmes de Spielberg aparecem de forma camuflada, seja em uma marquise de cinema com o nome de produção, um outdoor com um apresentador de rádio que lembra muito Indiana Jones ou mesmo um bonequinho do E.T. em uma prateleira. Na segunda metade, as referências se tornam menos sutis ao serem encarnadas pelas criaturas verdes e tendo seu grande ápice com eles em um cinema cantando uma das músicas de "Branca de neve e os sete anões".

Um dos pontos mais notáveis de "Gremlins" são seus aspectos técnicos. Em momento algum as criaturas parecem inverossímeis, graças ao ótimo trabalho dos responsáveis pelos efeitos especiais, que utilizaram de miniaturas, eletrônicos e stop-motion com primor e que se mostra superior a muitos trabalhos de computação gráfica avançada. Outro destaque é a maravilhosa trilha de Jerry Goldsmith, com o tema das criaturas solidificando mais ainda o tom anárquico do filme.

Um dos ícones dos anos 80, "Gremlins" é uma viagem ao mundo dos pesadelos natalinos, da forma mais divertida possível, e cujos maiores apreciadores serão as crianças, por mais violento que seja. Apenas deixe a pipoca de lado, caso assista depois da meia noite, pois nunca se sabe, pode haver um gremlin escondido pela sua sala.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A MALVADA

A malvada (All about Eve, 1950)
Dirigido por Joseph L. Mankiewicz
Por Flávio Brun

Há quem diga que é difícil de se escrever sobre filmes dos quais se gosta. Uma vez que minha vida como cinéfilo é dividida em pré-"A malvada" e pós-"A malvada", é possível afirmar que falar desse filme é uma missão quase impossível para mim. Pode até parecer exagero meu, mas garanto que não sou o único a venerar esse clássico da época de ouro do cinema estadunidense.

O mundo da sétima arte trabalha de forma engraçada. Muitas vezes passam-se anos e anos sem um grande filme, e em compensação surgem vários ótimos filmes em um único ano. Um desses anos foi 1939, com "... E o vento levou", "O mágico de Oz", e mais alguns outros. 1994 foi outro desses anos, com "Forrest Gump", "Pulp Fiction" e "Um sonho de liberdade", mas de todos os anos produtivos de Hollywood, o melhor foi 1950, em que foram produzidas duas das melhores obras já feitas na indústria cinematográfica: "A malvada" e "Crepúsculo dos deuses". Ambos são filmes obrigatórios de serem assistidos por todo aquele que se intitula cinéfilo, e possuem o máximo que um filme pode atingir em todos os aspectos, principalmente narrativa e interpretação.

Como de praxe, os tradutores tupiniquins foram criativos ao passar o título para nossa língua e de "Tudo sobre Eve" o filme passou a se chamar "A malvada", em uma manobra que não apenas fez com que essa obra-prima recebesse um título de novela mexicana, mas também faz esperar que uma das personagens seja má, algo que o título original não menciona. Felizmente, em 1999 o filme espanhol "Tudo sobre minha mãe" fez sucesso ao prestar uma grande homenagem a esse filme, e fez com que muitos redescobrissem esse grande clássico (um personagem do filme espanhol diz: "que mania eles têm de trocar o título! 'All about Eve' quer dizer 'Tudo sobre Eve'").

Ao começo do filme, somos apresentados a uma premiação, o prêmio Sarah Siddons que é o Oscar do teatro. Na platéia do evento vemos um grupo de pessoas com rostos indiferentes, e até infelizes de certa forma, enquanto uma voz apresenta-nos os personagens. Essa voz pertence a Addison DeWitt (George Sanders), um crítico cuja caneta é mais venenosa que a mais perigosa das cobras. Logo a seguir, ele apresenta o diretor premiado na noite, Bill Sampson (Gary Merrill) e o autor também premiado, Lloyd Richards (Hugh Marlowe) - de acordo com Addison, meros pilares que seguram o holofote que é a atriz, Eve Harrington (Anne Baxter). Também são apresentados outros personagens, principalmente Karen Richards (Celeste Holm), a esposa de Lloyd e Margo Channing (Bette Davis), uma atriz quarentona parecendo completamente indiferente ao que se passa no recinto.

No momento em que Eve recebe seu prêmio, tudo simplesmente pára (em um dos primeiros usos de freeze frame da história) e Addison diz: "Eve. (...) Já falaram sobre o que ela come, o que ela veste, quem ela conhece e onde ela esteve, quando e onde ela vai ir. Eve. Vocês já sabem tudo sobre Eve. O que mais há sobre Eve que vocês não sabem?". E nesse instante, começa o flashback que conta a história de ascenção de Eve, narrada ora por Karen, ora por Margo. Tudo começou em uma noite chuvosa, onde Karen encontra Eve, uma garota pobre e apaixonada pelo trabalho de Margo. Como Karen e Margo são melhores amigas e vendo a devoção da jovem por Margo, Karen resolve apresentá-la à amiga, que se comove com sua história e leva-a pra casa empregando-a como cozinheira, acompanhante, conselheira. Todos parecem adorar Eve, com exceção de Birdie (Thelma Ritter), que desde o primeiro momento sente que Eve está tramando algo. Com o tempo, Eve começa a mostrar seus reais interesses e torna-se a malvada a qual o título se refere.

A sinopse pode parecer um tanto familiar, mas é porque o tema já foi inumeramente reutilizado, mas nenhuma imitação conseguiu chegar aos pés do original. As novelas da Globo, principalmente as de Gilberto Braga, possuem uma Eve e uma Margo disfarçadas. O caso mais descarado de cópia foi na novela "Celebridade", que nada mais foi que "A malvada" reduzida à baixeza das novelas brasileiras e extendida em centenas de capítulos.

Ao assistir a performance de Bette Davis como Margo Channing, estabeleci um padrão de referência a qual todas as interpretações devem ser medidas. Nenhuma atriz conseguiu igualar-se a Bette neste filme, que está simplesmente perfeita. Na época do lançamento, a atriz Tallulah Bankhead entrou com ações contra Bette por esta ter usado dos mesmos maneirismos por que era conhecida. Bette possuia todo o equipamento necessário para interpretar este papel que é aquele que não aparece mais de uma vez na vida de uma atriz (muitas vezes nem chega a aparecer). Impressionante é o fato de que Bette foi uma solução emergencial para a produção, pois já haviam escolhido Claudette Colbert para o papel, mas ela havia sofrido alguns problemas de saúde e teve que se ausentar, para a sorte de Bette (e do público). Ninguém poderia ter feito uma Margo Channing melhor! A atriz possuia tanto poder de expressão corporal que até nos momentos em que não fala nada seu rosto fala por si, principalmente por seu olhar - até uma música ela possui sobre seus olhos (a saber, a música é "Bette Davis' eyes").

É possível afirmar que o pivô do filme é Margo, e ao seu redor figuram estrelas que brilham com excelentes atuações. Celeste Holm está bem como Karen, mas em matéria de atriz coadjuvante, o destaque vai para Thelma Ritter. Estranho saber que esta atriz com o talento que tem sempre trabalhou como coadjuvante, e mais estranho ainda ver sua personagem aqui simplesmente sumir na metade do filme (se há algo a reclamar de "A malvada" é isto). Apesar de ser personagem-título, Eve é uma coadjuvante no filme, mas Anne Baxter insistiu em ter seu nome indicado como atriz principal nas premiações. A presunção da atriz foi tamanha que fez com que ela e Bette perdessem o prêmio, que quase certamente ambas teriam ganhado caso nomeadas apropriadamente. Não é despropositalmente que apenas as mulheres são mencionadas, pois os homens são meros combustíveis das ações tomadas pelas mulheres. De todos eles, o melhor é, com certeza, George Sanders, que torna toda a arrogância de seu personagem incrivelmente verossímil. Em linhas gerais, este é o melhor elenco já reunido para um filme.

O diretor e roteirista Joseph L. Mankiewicz é o responsável por dar a alma de todos esses personagens. Irmão de Herman Mankiewicz (roteirista de "Cidadão Kane", eleito por vários especialistas como o melhor filme de todos os tempos), Joseph prova que o talento é de família e escreveu um dos roteiros mais enxutos e referenciáveis já vistos. Praticamente todas as frases são carregadas de um tom ácido, não só de personagem para personagem, mas também sobre os assuntos que aborda, principalmente quando cinema e teatro estão em pauta. Logo no começo do filme, por exemplo, Addison discursa sobre o prêmio Sarah Siddons com a seguinte fala:

"Talvez o prêmio Sarah Siddons seja desconhecido para você. Ele foi poupado do sensacionalismo dado a prêmios questionáveis tais como o Pulitzer ou aquele prêmio anual dado por aquela sociedade cinematográfica".

Mesmo com toda a ironia presente quando cinema é mencionado, ele sutilmente aparece como uma ameaça ao teatro, que rouba seus atores e diretores. O personagem de Gary Merrill diz "não diga que cinema não é teatro. Pode não ser seu teatro, mas pode ser o de alguém". Aqui o ataque ao cinema é sutil, apenas acusa-o de ladrão de pessoal, enquanto em "Crepúsculo dos deuses" o ataque é mais direto e eficiente. A paixão de Eve pelo teatro, por exemplo, não passa de uma grande atuação, basta ver perto do fim quando ela se mostra totalmente indiferente quando é questionada se vai voltar ao teatro após ir a Hollywood ou não.

Além de tudo isso, há uma série interminável de falas que figuram entre as mais famosas do cinema - a mais lembrada é "Apertem os cintos. Vai ser uma noite turbulenta". Vale a pena lembrar que o filme foi feito no começo dos anos 50, em que a televisão era uma ameaça ao cinema, e Addison DeWitt lança a frase final sobre a superioridade do cinema sobre a televisão a uma atriz iniciante (Marylin Monroe, ainda desconhecida): "TV é isso, nada mais que testes".

Além de toda a sagacidade verbal que o roteiro possui, há também uma série de outras sutilezas. Há duas ótimas cenas cujo simbolismo fala mais que um grande diálogo. Uma delas é quando Eve é flagrada fazendo reverências com o vestido de Margo. Quando ela é vista, ela segura o vestido tal qual um corpo, simbolizando sua mentira morta e levada embora. Desse momento em diante, Margo abre os olhos e vê que Eve não é tão boazinha quanto parece. Já no final do filme quando Phoebe (Barbara Bates) segura o prêmio de Eve, a associação de espelhos refletem o que está por vir e servem como um aviso dos milhares de impostores que circulam e estão todos combatendo entre si para pôr suas mãos em seus objetivos. Essa é um dos finais mais lindos e impactantes já filmados, e não há palavras o suficiente para descrevê-lo. De acordo com o código Hayes, que dizia que nenhum filme poderia ofender os valores morais, muita coisa que seria ofensiva está lá, sim, porém de forma muito bem camuflada, como por exemplo o lesbianismo de Eve ou as insinuações de Karen sobre a integridade do marido quando Eve vai lhe pedir desculpas ("de joelhos, sem dúvida!", diz ela).

Os números ajudam a comprovar o que o filme realmente oferece: este é um dos recordistas do Oscar, com 14 indicações (alcançado apenas quase meio século depois por "Titanic") das quais foi premiado em seis categorias (melhor filme, roteiro, direção, ator coadjuvante, figurino e som) e segura também o recorde de indicações de atuações femininas, com praticamente todas as atrizes do filme indicadas (Bette Davis e Anne Baxter como atriz principal e Thelma Ritter e Celeste Holm como atrizes coadjuvantes), mas por incrível que pareça nenhuma delas levou a estatueta para casa. Na categoria principal, Bette Davis realmente merecia ter levado o prêmio, mas provavelmente ela e Gloria Swanson (a Norma Desmond de "Crepúsculo dos deuses") se anularam e no fim nenhuma delas ganhou. O mesmo deve ter acontecido com as atrizes coadjuvantes, pois elas estavam incrivelmente bem em seus papéis, embora não no mesmo nível de Bette e Gloria. Ironicamente, em um filme com tanta indicação para atrizes, a única estatueta recebida por atuação foi para George Sanders, mais que merecida por sua interpretação memorável de Addison DeWitt.

Somado a tudo isso, o que tornou "A malvada" um divisor de águas na minha vida como cinéfilo foi simplesmente porque esse filme me abriu a mente para uma outra forma de cinema, e me introduziu à verdadeira sétima arte, que parece ter se perdido no tempo. Felizmente fui resgatado por esse filme e aprendi a apreciar os clássicos do passado.

Em uma cena, Addison DeWitt, mencionando sua primeira impressão sobre Eve como atriz, diz a Margo:

"Como você sabe, eu vivo no teatro como um monge vive em sua fé. Não tenho outro mundo, nem outra vida - e muito raramente acontece aquele momento de revelação por qual todo crente espera e reza. Você foi um, Jeanne Eagels outro. Eve Harrington será um deles".

"A malvada" foi o meu.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

HAIRSPRAY - EM BUSCA DA FAMA

Hairspray - em busca da fama (Hairspray, 2007)
Dirigido por Adam Shankman
Por Flávio Brun

Os anos 60 parecem estar voltando à moda, principalmente na forma de musicais adaptados de peças da Broadway, o que não poderia ser mais próprio, pois essa foi a década de maior sucesso dos musicais. Em 2005 foi feito o amoral mas divertido "Os produtores". Em 2006 foi a vez da música negra entrar nos filmes musicais em "Dreamgirls - em busca de um sonho". Esse ano foi a vez de "Hairspray", que é definitivamente o mais divertido e acessível ao público dos musicais da safra que estamos tendo esta década.

No fim da década de 70, onde musicais já eram coisa do passado e eram completamente negligenciados pelo público, um milagre aconteceu ao ser lançado "Grease - nos tempos da brilhantina" - o musical adolescente foi a maior bilheteria do ano (bateu até "Superman - o filme") e firmou John Travolta como um ídolo das adolescentes. Infelizmente, esse foi um caso isolado de musicais vindo à tona, porém quase trinta anos mais tarde, "High School musical" reviveu o mundo de adolescentes de colegial cantantes, tornando-se uma febre entre crianças e pré-adolescentes. Aproveitando o gancho deixado por "High School Musical", "Hairspray" retorna com vários colegiais cantando do começo ao fim, mas é mais bem humorado e bem executado que seus predecessores.

Anos 60, os tempos estão mudando, os cabelos estão subindo e ficando cada vez mais rígidos por causa do laquê (hairspray, em inglês) e a segregação racial é um dos assuntos mais quentes da época. Nesse cenário que se passa "Hairspray", a história de Tracy Turnblad (Nikki Blonsky), uma garota alguns (muitos) quilos acima do peso e com alto-astral de tamanho equivalente, cujo sonho é ser integrante do grupo de adolescentes que dançam no Corny Collins Show (corny, em inglês quer dizer "piegas"), um programa de televisão local que todo jovem assiste. Sua igualmente "cheinha" mãe, Edna (John Travolta), não sai de casa há mais de uma década e é casada com Wilbur (Christopher Walken), dono de uma loja de artigos de pregar peças. Para dificultar o caminho de Tracy é necessária a inserção dos vilões, Velma Von Tussle (Michelle Pfeifer) e sua filha Amber (Brittany Snow), as "rainhas" do Corny Collins Show.

Ano passado, "Dreamgirls" mostrou a luta de um grupo de negros enfrentando um mercado prominentemente branco e conquistando espaço no mundo da música e na sociedade. Em "Hairspray", o tema de segregação racial é apenas um tópico secundário mas, estranhamente, é apresentado de forma muito mais eficiente que seu predecessor. No programa "Corny Collins Show" apenas jovens brancos dançam, e é reservado um dia a cada mês em que apenas os negros aparecerem (o "Negro Day"). Em "Dreamgirls", não é feito nenhum tipo de demonstração pública pedindo direitos iguais a pessoas de cor, enquanto isso gera boas cenas em "Hairspray". Infelizmente o mundo não funciona como o que acontece no filme em que, no fim, todo mundo acaba se aceitando independente das diferenças, mas pelo menos ele mostra que havia algo errado e não faz vista grossa aos acontecimentos vergonhosos da nação.

A carreira de John Travolta é uma das mais interessantes do povo de Hollywood, sendo que desde os anos 70 ele se mantém sempre conhecido, mesmo com todos os altos e baixos de sua trajetória. Depois do estrondoso sucesso de "Embalos de sábado a noite", Travolta tornou-se o padrão de dançarino da época, e com "Grease" apenas confirmou sua popularidade. No começo dos anos 80, ele cometeu o cúmulo da breguice e mau gosto ao dançar besuntado em óleo em "Os embalos de sábado a noite continuam", e sua carreira quase foi para o brejo. Depois de vários filmes pequenos, ele voltou com tudo em "Pulp Fiction" e poucos anos depois ele cometeu o pior erro de sua carreira ao realizar o péssimo "A reconquista". Com muito esforço ele continua trabalhando em diversos projetos, na maioria pequenos, mas em "Hairspray" ele se superou e fez uma atuação digníssima de pelo menos indicação ao Oscar de ator coadjuvante (já é tempo de começar a fazer apostas!) ao interpretar a dona-de-casa obesa e extremamente simpática. Três décadas podem ter se passado, mas seu talento não mostra sinais de envelhecimento, comprovando que seu território é o canto e a dança.

Pode parecer questionável o fato de Travolta ter sido escolhido para o papel de Edna, mas em todas as encarnações de "Hairspray" essa personagem foi interpretada por um homem (Harvey Fierstein na versão da Broadway) ou um travesti (Divine, na versão cinematográfica de 1988). Só de ver Travolta coberto de maquiagem e parecendo uma mulher já proporciona boas doses de riso ao assistir o filme, e ao dançar, mesmo entupido de enchimento para parecer mais gordo, ainda parece o mesmo jovem de trinta anos atrás.

Praticamente todo o material publicitário mostra Travolta como atração principal, mas o destaque pra mim foi a personagem (e atuação, principalmente) de Michelle Pfeifer como vilã. Totalmente caricata, ela parece uma mistura de miss (título que ela orgulhosamente canta em determinada cena) e vilão de desenho da Disney, sendo hilária com suas trapalhadas e completamente ineficiente em seus planos absurdos. Suas falas e suspeitas beiram o absurdo, quando ela acusa Tracy de ser comunista apenas porque a jovem é pró-integração de brancos e negros. Igualmente merecedora de elogios é Nikki Blonsky que irradia a tela com sua alegria, com um sorriso que só poderia pertencer à Xuxa trabalhando na Disney. Quem não ficar com vontade de bater palmas enquanto ela caminha alegremente pelas ruas cantando "Good morning, Baltimore" ou não abrir um sorriso ao vê-la na loja de roupas de tamanhos especiais, necessita verificar seu nível de mau-humor.

"Hairspray" tem tudo que precisa para fazer sucesso: uma história bem divertida, um elenco de primeira e uma trilha sonora contagiante. Com tudo isso, meu sorriso permaneceu mais firme que os cabelos no filme.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

O MAIOR ESPETÁCULO DA TERRA

O Maior Espetáculo da Terra (The Greatest Show on Earth, 1952)
Dirigido por Cecil B. DeMile
Por Matheus Mocelin Carvalho

Para as gerações mais recentes, quando o circo é mencionado a primeira relação que deve ser feita é com os espetáculos pirotécnicos e acrobáticos de grupos como o Cirque Du Soleil. Para gerações passadas, as imagens relacionadas ao circo são de inocência e nostalgia: o grande espetáculo chegando à cidade, filas enormes de famílias agrupadas para terem a chance de ver um leão ou um tigre de verdade, crianças com a boca cheia de algodão doce e a grande lona abrigando palhaços e malabaristas. Apesar da atual decadência da arte circense, é este tipo de espetáculo que O Maior Espetáculo da Terra nos remete, de uma época onde o circo à moda antiga era uma grande atração. O filme foi dirigido pelo grande Cecil B. DeMille, conhecido por seus épicos grandiosos como Sansão e Dalila e Os Dez Mandamentos. Apesar de fugir do cenário bíblico de época, O Maior Espetáculo da Terra pertence à mesma categoria de filme espetáculo (como o próprio título diz) dos outros dois. De fato, ele foi popular o bastante na época para ganhar o Oscar de Melhor Filme de 1952, algo que hoje é considerado um dos maiores erros da Academia.

Acompanhado de uma pomposa narração feita pelo próprio DeMille, somos apresentados a uma equipe do circo Ringling Bros. and Barnum & Bailey. Brad Braden (Charlton Heston) é o durão gerente do circo que vive pelo seu trabalho (“Você tem serragem nas veias” lhe dizem). Ele convence os chefões do espetáculo que este deve se apresentar por uma temporada completa, para a alegria de seus integrantes. Entre estes encontramos Holly (Betty Hutton), a trapezista da equipe que tem um flerte amoroso com Brad, e o palhaço Buttons (James Stewart), que apesar de ser adorado por todos possui um passado misterioso. Brad comunica que, para aumentar a popularidade do circo, irá contratar o Grande Sebastian (Coronel Wilde), um trapezista cuja fama deve assegurar a venda de ingressos. Holly, que estava disposta a se apresentar no picadeiro central, não se agrada com a idéia de ter de dividir a atenção do público, se mostrando disposta a fazer de tudo para ser o núcleo dos aplausos. O que ela não contava é que ela iria cair sob o charme de Sebastian, e enquanto os dois travam uma batalha no picadeiro, Holly também tem que cuidar para não deixar Brad ser encantado por sua rival Angel (Gloria Grahame).

Com um enredo tão simples e em vezes até medíocre, é uma surpresa que O Maior Espetáculo da Terra também tenha ganhado o Oscar de Melhor História (precursor do prêmio de Melhor Roteiro Original). O melodramático triângulo amoroso parece ser apenas uma desculpa para unir todas as inumeráveis cenas de picadeiro, com os rasos personagens recebendo pouca atenção, especialmente o palhaço interpretado por James Stewart que tinha o potencial para se tornar o mais interessante deles. Charlton Heston aparece em seu primeiro papel de destaque e divide a atenção da heroína com o canastrão Coronel Wilde. Seu Brad Braden é o único personagem que parece realmente ser apaixonado pelo seu trabalho no circo – ainda que esta paixão seja mais de um ponto de vista administrativo e megalomaníaco do que artístico, e de uma condição do roteiro do que da atuação do ator. Quanto ao resto dos personagens, eles são apresentados como trabalhadores e esforçados, mas não existe entre eles a preocupação de criar a mágica e a ilusão do circo. Todos seus interesses parecem ser meramente interessados nos olhso do público (ao menos até os momentos finais), como Holly e seu desejo de ocupar o picadeiro central. Por não entrar ilustrar melhor tais detalhes e por fugir de mostrar a hierarquia entre os profissionais por trás da grande lona, O Maior Espetáculo da Terra falha ao tentar apresentar uma visão dos bastidores da vida circense.

Como já mencionado, a produção se destaca na categoria de “cinema espetáculo”, e sua maior intenção parece ser apresentar o circo na tela grande. Intercalado em meio ao ralo enredo (ou seria ao contrário) são diversas cenas em que vemos o mundo circense ganhar vida em “glorioso Technicolor”. Em uma enorme parada de cores e vestuários suntuosos, vemos trapezistas saltando sobre a platéia, carros alegóricos cruzando o picadeiro e até mesmo alguns números musicais. Feito em associação com o verdadeiro circo Barnum and Bailey, o filme se destaca no quesito de produção, dando uma autêntica ilusão de como era um espetáculo circense da época (ao menos um de alto orçamento). De fato, DeMille parece tão preocupado com a sedução visual que a maior parte da exagerada duração do filme (152 minutos) é gasta com tais cenas. Para criar alguma tensão nos momentos finais, um personagem surge do nada afim de alguns problemas para o grupo, mas tudo soa apenas como mais uma manobra calculada do roteiro.

Apesar de não ser um filme verdadeiramente ruim, o fato de ter ganhado o Oscar de Melhor Filme colocou O Maior Espetáculo da Terra na posição número um de várias listas de “piores filmes a terem ganhado o Oscar”. Ainda que tais afirmações sejam sempre discutíveis dependendo da ótica sob a qual o filme é analisado, a produção de DeMille é um deleite aos olhos como um picadeiro colorido, mas oco como uma lona vazia. Para melhores filmes ambientados no mundo circense, procure O Circo de Charles Chaplin, Monstros de Tod Browning ou até mesmo Dumbo de Walt Disney.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

SINFONIA DE PARIS

Sinfonia de Paris (An American in Paris, 1951)
Dirigido por Vincente Minnelli
Por Flávio Brun

Paris: nenhuma outra cidade no mundo seria tão adequada para servir de cenário para um filme visualmente estonteante, e foi a escolha perfeita para o grande musical de 1951 do diretor Vincente Minnelli. A cidade-luz esbanja charme, elegância e romantismo nessa belíssima produção, mesmo que a Paris usada esteja localizada nos estúdios da MGM.

A importância histórica de "Sinfonia de Paris" não pode ser ignorada. Apesar de simples, e por vezes até sem graça, ainda assim o filme foi responsável por uma revolução na forma de se fazer musicais na época. Em 1948, o filme inglês "Os sapatinhos vermelhos" inovou ao apresentar um balét de quinze minutos no meio da narrativa, e três anos mais tarde, "Sinfonia de Paris" incorporou a idéia de um grande número musical ao cinema estadunidense, ao pôr um espetáculo de dança grandioso (com dezesseis minutos!) como forma de encerramento do filme. A idéia deu tão certo que veio a ser usada em praticamente todos os musicais da década como, por exemplo, o fantástico "Broadway Mellody" de "Cantando na chuva", entre inúmeros outros.

O responsável pela criação do número símbolo do filme foi Gene Kelly, talvez o maior dançarino que as telas do cinema já viram. Seu estilo de dança é tão fluido que chega a nos dar a impressão de que sair dançando em meio às ruas é algo natural de se fazer. Tão bem sucedida foi a inserção do balé ao fim da película que rendeu inúmeros prêmios à produção, incluindo o Oscar de melhor filme, e um prêmio honorário a Gene Kelly por sua contribuição à sétima arte na área de dança - merecidíssimo, pois como mencionado anteriormente, seu trabalho aqui estabeleceu um padrão na forma de se fazer musicais.

Apesar da importância histórica, esse não é um filme perfeito, muito pelo contrário, sendo que o principal defeito se encontra na história em si - vazia e por muitas vezes desinteressante. Os personagens são pouco explorados e bastante estereotipados. Jerry Mulligan é o típico personagem de Gene Kelly: soldado, alegre e sempre cantando e dançando. Lise Bouvier (personagem de Leslie Caron) é a francesa charmosa e inocente que despropositalmente rouba o coração de Jerry, que não sabe que ela está para se casar com Henri Buriel (Georges Guetary), um amigo de Mulligan. Um dos poucos personagens interessantes é Milo Robers (Nina Foch), uma milionária que resolve dar uma ajuda monetária a Jerry, mas politicamente correta a ponto de não pedir (explicitamente) nada em troca. A história é simples (até demais) e subdesenvolvida no filme, servindo apenas de cabide para um grupo de canções e danças, sendo que poucas delas são memoráveis e bastante descartáveis. Ao término do filme, ficamos encantados com o grande balé, que não tem um significado importante para a narrativa, mas que ainda assim encanta, porém logo a seguir, na conclusão da história, o destino dos personagens toma um rumo tão implausível que é difícil crer que está acontecendo, apesar de estar diante de nossos olhos. Além do mais, Milo é totalmente esquecida na conclusão. O resultado é sairmos boquiabertos: pela dança e pelo encerramento irreal.

Mesmo com tantos defeitos narrativos, ainda assim há alguns pontos interessantes. A forma de apresentação dos personagens no começo do filme é bem criativa, com eles próprios dando suas descrições. Como diz o velho ditado, "conhece-te a ti mesmo que eu me conheço bem". Outro ponto positivo é a presença sempre marcante de Gene Kelly. Ele pode não ser o mais talentoso dos atores, mas seu carisma e talento na sua área compensam a falta de poder dramático.

A escolha de Leslie Caron, entretanto, não foi a mais acertada para o papel. Lise é para ser uma jovem linda, capaz de fazer os homens caírem a seus pés à primeira vista, porém Leslie é apenas charmosinha, e não tem o sex appeal que a personagem necessitava. Não que a atriz ideal seja um sex symbol como Marilyn Monroe, e sim alguém mais visualmente atraente que Caron.

Como sempre, o Oscar é uma premiação controversa, e é impossível agradar a todos. No ano de 1951, o grande vitorioso foi "Sinfonia de Paris", com seis estatuetas (o filme "Um lugar ao sol" recebeu o mesmo número de Oscar naquele ano). O fator merecimento é questionável, principalmente se analisarmos os concorrentes ao prêmio daquele ano. Os principais eram "Uma rua chamada pecado" e "Um lugar ao sol", e ambos eram mais aptos a saírem vitoriosos que "Sinfonia de Paris". "Uma rua chamada pecado" possuía o que o vencedor não tinha: uma trama elaborada, com um roteiro magnífico e poderosas atuações de todo o elenco, e o mesmo se aplica a "Um lugar ao sol". O único diferencial de "Sinfonia de Paris" se encontra em aspectos técnicos, como a bela fotografia no glorioso Technicolor (os outros dois concorrentes mencionados foram filmados em preto e branco), a perfeição visual de cada tomada característica dos filmes de Minnelli além, é claro, do tão mencionado número musical que revolucionou o cinema musical da época.

Praticamente todas as boas idéias de "Sinfonia de Paris" estão presentes em outros filmes superiores, porém é válido assisti-lo como marco histórico e um ponto de referência em matéria de como se faz um número musical. Para ver Gene Kelly em sua melhor forma, assista "Cantando na chuva". Para ver um belo musical de Minnelli, o recomendado é "A roda da fortuna". Mas se o tempo for curto e quiser unir bons aspectos de ambos, o recomendado é "Sinfonia de Paris". O resultado pode não ser tão satisfatório, mas no geral, diverte.

domingo, 12 de agosto de 2007

AMADEUS

Amadeus (Amadeus, 1984)
Dirigido por Milos Forman
Por Flávio Brun

O nome Amadeus pode não ser familiar para muitos, porém o nome Mozart sim. Wolfgang Amadeus Mozart certamente foi um dos maiores compositores de música clássica da história, e serviu de tema para o que veio a se tornar um dos melhores filmes já feitos. Em contrapartida, Antonio Salieri é um nome quase desconhecido por leigos no cenário de música clássica, mas tornou-se imortal nessa obra do cinema como seu protagonista. O material publicitário teve a audácia de expressar "tudo o que você ouviu é verdade", e nesse tom de farsa que o filme realmente sucede.

O filme é uma adaptação da peça homônima de Peter Shaffer e teve seu título genialmente usado para pôr sentido na obra. O nome do meio do famoso compositor tem como uma de suas traduções "amado de Deus", e o filme enfatiza isso pelos olhos de Salieri, outro compositor contemporâneo, porém que tem a ambição de fazer grandes coisas no nome do Senhor, porém falta-lhe o talendo, enquanto Mozart tem todo o talento que falta a Salieri, mas sem nenhum objetivo nobre. Primeiro guiado por admiração, depois inveja e ultimamente ódio por Mozart, o velho Salieri conta em forma de flashback como ele levou Mozart à morte.

O diretor Milos Forman, que quase uma década antes havia dirigido o premiadíssimo "Um estranho no ninho", apostou em nomes não muito conhecidos na época para grandes papéis em um filme caro, uma aposta arriscada que não poderia ter obtido resultado melhor. A escolha de F. Murray Abraham para o papel de Salieri fez com que o mundo fosse presenteado com uma das melhores interpretações que o público já viu (eu, pessoalmente, sempre o uso como padrão de referência de como um ator deve interpretar). O personagem criado por Abraham é a personificação da inveja em todos seus estágios, tendo seu ápice na velhice, decadente e incapaz de morrer, sendo obrigado a viver na eterna tortura de ver seu trabalho esquecido por todos e o de seu rival sempre lembrado, em uma humilhação constante. A força de expressão desse ator se mostra em todos os quadros em que ele está presente, e em praticamente todas as premiações daquele ano, ele conseguiu o prêmio de melhor ator, mais que merecidamente. Infelizmente, após "Amadeus", Abraham não obteve muitos papéis de destaque em grandes produções, mas em um filme ele fez o trabalho que muitos outros atores não conseguem em uma carreira.

Tal qual F. Murray Abraham, o ator Tom Hulce foi outro acerto da equipe de casting. O ator conseguiu eficientemente encarnar todos os estágios do complexo trabalho de retratar um gênio da música em sua trilha que passa entre glória e decadência, uma linha tênue entre a genialidade e a loucura. Como a maioria dos gênios da área artística, Mozart sofreu várias críticas em seu trabalho, e apenas após sua morte realmente foi reconhecido como merece - a cena do começo do filme em que o padre reconhece a música de Mozart e não a de Salieri demonstra isso com clareza. Como o filme tanto enfatiza, às vezes parece que Deus brinca em colocar os dons nas pessoas erradas, e Ele colocou o dom da mais bela música em um homenzinho vulgar, comum e sem nenhuma nobreza - enquanto Salieri era o oposto de Mozart. Em certo ponto do filme Mozart fala o que resume todo seu personagem: "Sou um homem vulgar, mas lhe asseguro que minha música não o é".

Há uma cena chave que justifica o ódio de Salieri por Mozart: em um momento, Mozart é apresentado ao imperador da Áustria (Jeffrey Jones), e o Salieri compõe uma pequena marcha como um presente simbólico para este que era seu ídolo de infância e cujo trabalho ele realmente admira. O processo de composição dessa marcha é mostrado, e vemos a dificuldade com que Salieri o fez, mas sempre grato e louvando a Deus por ter lhe dado a chance. Ao receber o presente, Mozart acaba humilhando Salieri ao dizer que sua marcha não funciona e começa a fazer alterações sem o menor esforço. A outra cena chave é no final, em que Mozart resolve ditar sua última obra para Salieri, este incapaz de acompanhar a genialidade do imortal compositor.

Todo filme é passível de segundas interpretações, e "Amadeus" não é exceção à regra. Há um núcleo de personagens composto pelo imperador da Áustria e seus conselheiros, além de Salieri, o compositor da corte. Nas primeiras vezes que assisti ao filme, as cenas em que esse grupo discutia entre si me parecia apenas uma forma de deixar o filme mais longo, mas após várias considerações, foi encontrado o lado metafórico do filme, e cada papel tem seu devido significado. O imperador claramente simboliza o público em geral, sem o talento para apreciar o que lhe é mostrado, totalmente influenciado pela crítica e que é uma hipérbole de como esse mesmo público é capaz de conduzir a vida dos grandes artistas. Os conselheiros do imperador simbolizam os meios de comunicação que costumam ter um papel em influenciar a opinião do público e normalmente não costumam concordar entre si, mas que quando querem, são capazes de levar um artista à ruína. Seguindo por essa linha, Salieri tem o papel dos críticos, que por diversos motivos tentam causar a desgraça de alguém, ou também artistas frustrados que não conseguem carregar o fardo de ver um companheiro de profissão atingir o nível que eles jamais conseguiriam.

Apenas o cinema estadunidense consegue fazer filmes de tamanho escopo artístico, embora a maioria das superproduções sejam filmadas fora das terras do tio Sam. Mesmo não tendo a profundidade intelectual do cinema europeu e asiático, é fato que em matéria de extravagâncias ninguém ganha dos americanos. "Amadeus" representa o ápice do requinte em produções de época, filmado nas belíssimas locações na Áustria e República Tcheca, o que criou um ar de veracidade a tudo que se via na tela. São poucas as produções que conseguem obter tamanho êxito em matéria visual, com todos os elementos trabalhando na mais perfeita harmonia de figurino, fotografia, direção de arte e todos os outros ramos responsáveis por organizar tudo que nos é apresentado.

Em 2002, o filme recebeu uma "versão do diretor", com vinte minutos de cenas estendidas e/ou cortadas da versão original. Muitas delas não adicionam muito à narrativa, apenas enfatizam o que já havia sido mostrado, com exceção de uma: a cena em que a esposa de Mozart, Constanza (Elizabeth Berridge), visita Salieri para pedir que ele ajude seu marido a conseguir um emprego. Na montagem original, ela apenas pede ajuda, mas na versão estendida é criado uma sub-trama em torno dos dois personagens, em que Salieri simplesmente humilha a mulher, o que nos dá uma diferente forma de interpretar a reação dela ao ver Salieri junto de Mozart logo antes de sua morte. As outras cenas excluídas da versão original apenas adicionam profundidade à irresponsabilidade de Mozart e elevam o nível de sua decadência, além das artimanhas de Salieri para destruir seu rival.

Ao acabar de contar sua história de inveja e traição, Salieri olha para o padre para quem está se confessando, e este mostra uma expressão perplexa de puro choque após tudo que ouviu, pois todas suas crenças foram contraditas por Salieri. Para um religioso, aceitar o fato de que Deus preferiu matar sua criação e seu porta-voz em favor de não ajudar o compositor desprovido de talento não é tarefa fácil, o que justifica a reação do padre. Salieri então se intitula o rei dos medíocres e sai absolvendo todos que ele vê pelo caminho. A pessoa retratada na tela pode ser a mais medíocre possível, mas em matéria de atuação e de filme, essa obra-prima passa longe do terreno da mediocridade.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS

Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976)
Dirigido por Bruno Barreto
Por Matheus Mocelin Carvalho

Baseado no clássico literário de Jorge Amado, Dona Flor e Seus Dois Maridos de Bruno Barreto é provavelmente a obra mais popular do cinema brasileiro. Lançado em 1976, o filme atraiu aos cinemas nacionais mais de 12 milhões de espectadores (ainda o filme nacional mais assistido), tendo ainda uma vida posterior de sucesso nos cinemas internacionais (o filme fez de Sônia Braga uma estrela nos Estados Unidos). Talvez uma das principais chaves desse sucesso seja que Barreto soube ir ao encontro de um público ainda oprimido pela ditadura militar, necessitado de ver cores e sensualidade na tela, mesmo que a atual realidade fosse totalmente adversa. Ao contrário de filmes de cineastas como Glauber Rocha e Ruy Guerra, Dona Flor não exige maiores esforços intelectuais para ser apreciado. Era basicamente o filme que o público queria ver: uma obra descompromissada cuja maior função é o entretenimento, e ainda acompanhada de sensuais cenas de uma Sônia Braga em sua melhor forma.

O filme tem início no carnaval de 1943, onde Vadinho (José Wilker), um incorrigível mulherengo e apostador, morre repentinamente, deixando para trás Flor (Sônia Braga), sua desconsolada mulher. Apesar das escapadas diárias de Vadinho e das freqüentes discussões, Flor era uma esposa dedicada e apaixonada, sendo que o casal tinha uma vida feliz na cama. Sozinha, ela acaba se envolvendo e logo depois se casando com Teodoro Madureira (Mauro Mendonça), o farmacêutico da cidade. Flor encontra no novo companheiro o marido fiel que nunca encontrou em Vadinho, e passa a ter uma vida estável e aparentemente feliz, mas da qual ela logo se cansa. Flor sente mesmo falta é do prazer carnal e do relacionamento imprevisto que tinha com o antigo marido e, de tanto chamá-lo em pensamento, Vadinho um dia aparece nu em sua cama, sendo que apenas Flor pode vê-lo. A moça se sente então dividida entre os dois homens, não querendo trair aquele que lhe dá tanto amor e não querendo resistir ao que lhe dá prazer.

Como o enredo do filme já pode deixar claro, Dona Flor e Seus Dois Maridos é o que podemos chamar de um exemplo do cinema escapismo, não devendo ser necessariamente avaliado pela sua profundidade ou pela significância de sua história. É um filme produzido simplesmente com o intuito de divertir seu público, e este é um papel que a obra exerce bem. Dona Flor é protagonizado pela figura do adorável vagabundo, um sujeito que, apesar de seu caráter duvidoso e do como destrata a heroína, consegue ganhar a simpatia do espectador com seu infame “jeitinho brasileiro” de levar a vida. Flor, a personagem mais complexa da história, representa a boa moça que é recatada por fora, mas que arde em chamas por dentro. Ela quer a estabilidade de uma vida conjugal, mas também não consegue abrir mão dos prazeres da vida carnal. Flor precisa dos dois maridos para a completarem e, assim, satisfaz os dois pólos opostos de sua personalidade. As ótimas atuações contribuem imensamente com a caracterização dos personagens, com o trio de protagonistas sendo o maior destaque (e ao contrário de alguns dos filmes que faria depois, aqui Sônia Braga pode mostrar que seu trabalho não se resumia apenas a mostrar seu belo corpo).

O diretor Bruno Barreto mostra seu talento para contar histórias ao optar por escolhas narrativas que fogem do que poderia se tornar banal nas mãos de outro diretor. A morte de Vadinho, por exemplo, é mostrada logo no início do filme, e sua relação com Flor é vista através de um flashback. Criando uma expectativa crescente em relação ao personagem, antes da apresentação de Vadinho escutamos as divergentes opiniões em relação a ele das pessoas que o cercavam (em um início que lembra o prólogo de Lawrence da Arábia de David Lean). O filme apresenta uma de suas maiores falhas no terceiro ato quando, após algumas cenas com o ritmo mais lento, parece querer apressar a história para chegar logo a sua conclusão, o que acaba prejudicando o maior fio narrativo da obra (a relação de Flor e o fantasma). Vale notar que, apesar da fama adquirida por Dona Flor e Seus Dois Maridos por suas provocantes cenas de sexo, Barreto consegue equilibrar bem a linha entre a comédia e a pornochanchada, sabiamente escolhendo dar maior destaque ao humor do que ao sexo, contrariando a política do cinema brasileiro da época.

Uma polêmica que cercou o filme entre os cineastas da época foi seu elevado orçamento 5,5 milhões de cruzeiros, cerca de dez vezes mais que o orçamento padrão para um filme brasileiro da época. Enquanto muitos produtores não conseguiam a verba necessária para a produção de seus filmes, Bruno Barreto conseguiu do Estado o financiamento para fazer um filme milionário, algo que não foi bem aceito entre outros diretores brasileiros. O público, no entanto, certamente parece não ter se importado.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

MINHA BELA DAMA

Minha bela dama (My fair lady, 1964)
Dirigido por George Cuckor
Por Flávio Brun

Houve um tempo em que o cinema era uma forma de arte totalmente diferente em comparação ao divertimento pipoca que temos atualmente. Os filmes eram produções grandiosas, levavam anos para serem feitos e o público esperava por anos curiosos pela menor notícia sobre a produção, as estréias eram eventos de gala, as apresentações em estilo de espetáculo com abertura, intervalo e entreato (nos filmes mais longos). Enfim, fazer cinema era mais que apenas uma forma de entreter as massas. Nesse período que alguns dos grandes musicais do cinema estadunidense foram feitos, e um dos mais adoráveis deles foi "Minha bela dama".

Em uma noite chuvosa, à entrada de um teatro, um professor de fonética encontra uma moça pobre que fala terrivelmente mal. Sua reação não é complacência para com a moça, e sim asco, dizendo que sua fala não é digna dos pilares do lugar onde se encontram. Henry Higgins (Rex Harrison), o professor em questão, confiante de seu talento e sempre orgulhoso, brinca sobre uma aposta com o Coronel Pickering (Wilfrid Hyde-White) de que em seis meses ele seria capaz de tornar aquela criatura simplória em uma verdadeira dama. No dia seguinte, Eliza Doolittle (Audrey Hepburn) vai atrás do professor para que este possa fazer algo e que ela possa se tornar algo mais do que é.

A história de menina pobre que recebe uma oportunidade de transformar-se em alguém importante é uma das mais conhecidas e contadas, mas em "Minha bela dama" é contada de tal maneira que a impressão que dá é que estamos ouvindo-a pela primeira vez. Em todas as recontagens de histórias ao estilo Cinderella, há uma fada madrinha, mas em nenhum outro filme há uma fada madrinha como Henry Higgins. Rex Harrison provê um dos personagens mais marcantes já vistos, com uma mistura de superioridade aristocrática, uma certa arrogância e ótimas falas. O treinamento de Eliza com Higgins proporciona risadas dignas das melhores comédias, em momento algum sendo clichê ou beirando o pastelão. Ver Higgins exigindo que Eliza pronuncie suas vogais corretamente ou a moça torcendo na corrida de cavalos estão entre as cenas mais engraçadas já vistas na telona.

A produção de "Minha bela dama" contou com uma publicidade imensa. Para começar, havia sido o valor mais caro já pago para adaptação de uma obra para o cinema (o filme foi uma adaptação da peça da Broadway). Outro ponto foi a controvérsia em respeito da escolha de elenco: a atriz que interpretava Eliza na Broadway foi a então desconhecida Julie Andrews, e devido aos custos da produção, o estúdio não quis correr riscos e chamou a estrela da época, Audrey Hepburn. O fato foi favorável a Julie Andrews, pois ficou livre para fazer Mary Poppins, filme por qual ganhou o Oscar de melhor atriz. Para Audrey Hepburn, não foi tão favorável, pois deixou-a com uma imagem de "ladra" de papéis (em "Bonequinha de luxo", três anos antes, ela havia ficado com o papel idealizado para Marilyn Monroe).

A controvérisa em respeito da escolha da atriz para o papel de Eliza não deveria ter sido motivo de tanto alarde. O único problema de Audrey Hepburn para o papel é que sua voz não era a mais ideal para canto, e visto que esse é um musical, isso faz diferença, mas não se tomarmos em conta o número de atores e atrizes dublados em canções ao longo da história (e mal dublados, muitas vezes, o que não é o caso aqui). Julie Andrews possuia (e ainda possui, por sinal) uma bela voz para canto, o que a tornaria mais adequada para a personagem, e garanto que ela teria feito um belo trabalho como Eliza no primeiro ato do filme, em que Eliza é pobre e "gente do povo", mas no segundo ato, em que a personagem se torna uma bela e refinada dama, Audrey era simplesmente insubstituível. Foram poucas as atrizes que ao longo da história que puderam ser símbolos de talento e elegância, e Audrey foi uma delas. Julie Andrews também tem sua classe e estilo, porém na época ela era mais apropriada para personagens mais "sapecas", como a Maria de "A noviça rebelde".

"Minha bela dama" é uma extravagância visual e sonora, típica das grandes produções dos anos 60. Cada aspecto da produção visual foi extremamente bem trabalhado, e cada fotograma da película exibe com primor. Pioneiro em aspectos de som, esse foi o primeiro musical a ter parte das músicas gravadas usando microfones sem fios escondidos no figurino dos personagens. Falando em figurinos, este é outro dos aspectos em que o filme se destaca. As roupas usadas por Eliza após tornar-se a bela dama são belíssimas, e ajudam a realçar a beleza e classe natural que a atriz possui. Tão bom foi o desempenho técnico da equipe que o filme foi premiado com várias estatuetas na cerimônia do Oscar de 1964.

Apesar de todas suas qualidades, o filme peca em alguns momentos. Para aqueles que dizem não gostar musicais, esse deve ser evitado, pois os (poucos) pontos baixos do filme estão nas cenas cantadas. Em inglês, o termo "showstopper" se refere a números musicais elaborados e que prendem atenção, "parando o show" por assim dizer. As músicas que são showstoppers são, principalmente, as cantadas pelo pai de Eliza (Stanley Holloway). Além de parar o show porque são interessantes, à sua maneira, também param a narrativa completamente, e o filme poderia simplesmente ter sido feito sem elas. Além disso, as músicas cantadas por Higgins tendem a ser longas e, de certa forma, cansativas, por não serem músicas propriamente ditas, e sim frases sem rima faladas com certo ritmo. Algumas delas são peculiares, pois ao tentar expressar seu ponto de vista machista, torna a orientação sexual do personagem um tanto dúbia. Ainda no quesito musical, há a dublagem de Marni Nixon para a personagem de Audrey Hepburn. Nixon era uma das dubladoras mais famosas e competentes da época, tendo dublado Debora Kerr em "O rei e eu" e Natalie Wood em "Amor sublime amor" - neste último ela dublou duas personagens em uma mesma música, mostrando que é uma camaleoa vocal.

Uma obra que contempla tantos gêneros (musical, comédia, romance) tem tudo para dar certo e deve sempre ser lembrada. As melhores músicas de "Minha bela dama" são a melhor forma de descrever a experiência que é assistir a esse grande filme: uma obra "adoráver" e que uma vez vista, faz qualquer um dizer que "poderia dançar a noite inteira e ainda implorar por mais".

segunda-feira, 9 de julho de 2007

MEU TIO

Meu Tio (Mon Oncle, 1958)
Dirigido por Jacques Tati
Por Matheus Mocelin Carvalho

Assim como a imagem de Charles Chaplin ficou eternizada no consenso popular através de seu personagem Vagabundo, caracterizado pelo seu bigode, bengala e chapéu, a primeira relação que pode ser feita ao nome de Jacques Tati é de uma figura alta, de cachimbo e chapéu, vestindo um longo casaco e com um peculiar modo de caminhar. Não se trata de uma descrição do ator e diretor francês, mas sim de seu personagem, o Sr. Hulot, que fez sua primeira aparição no filme As Férias do Sr. Hulot. Meu Tio, o filme subseqüente do diretor, apresenta o retorno do cômico personagem, desta vez entrando em conflito com a cultura consumista importada dos EUA que invadiu a França no período pós-guerra.

Seguindo a linhagem de Chaplin, que produzia obras com um viés político e social, através de Meu Tio Tati exerce uma crítica à modernização, à perda de valores interpessoais e à criação de uma sociedade hedonista que busca o prazer através do consumo. Se com Tempos Modernos Chaplin mostrou como a industrialização estava levando o homem à alienação social, Meu Tio mostra os resultados desta época. Caracterizando os frutos desta sociedade pós-moderna, o filme nos apresenta a família Arpel, composta pelo Sr. e a Sra. Arpel (Jean-Pierre Zola e Adrienne Servatie) e seu jovem filho Gerard (Alain Becourt). Localizados em um bairro de classe alta do subúrbio de Paris, os Arpel vivem em uma residência cuja construção poderia ter sido extraída diretamente de um guia de Art Déco: uma enorme mansão composta por vastos cômodos, uma garagem de porta mecanizada, uma vasta fachada com um jardim cercado por altos muros e, o símbolo máximo da ostentação, uma fonte em forma de peixe que a Sra. Arpel se orgulha em exibir aos visitantes. Todas as manhãs, o Sr. Arpel dirige o pequeno Gerard para a escola a caminho do trabalho, enquanto a matriarca mecanicamente cuida dos serviços domésticos todas as manhãs. É curioso perceber como, logo na abertura do filme, Tati nos apresenta a um mundo onde tudo é imaculadamente perfeito na superfície: a família amorosa que poderia ter saído de um filme norte-americano cercada por uma casa onde tudo brilha e onde a sra. Arpel metodicamente se preocupa com os mínimos detalhes em relação a limpeza da residência e do carro do marido. Mais tarde ficamos sabendo, no entanto, que Gerard é considerado uma “criança problema” por seus pais, pois não se preocupa com os padrões ditados pela família e dá maior atenção às brincadeiras do que aos estudos.

Em um bairro mais humilde da cidade, mas onde o charme e a simplicidade da velha França ainda não cederam à modernização, encontra-se o Sr. Hulot (Tati), irmão da Sra. Arpel. Contrastando com a moradia perfeita e estéril da irmã, ele vive em uma vila onde os moradores moram próximos uns aos outros e inevitavelmente se cumprimentam todas as manhãs; onde o gari varre as ruas e conversa incessantemente com o ocasional pedestre e onde as pessoas se unem ao redor das barracas de frutas e legumes para não perderem a última oferta da feira. Em um dos melhores planos do filme, vemos o grande sobrado onde o sr. Hulot mora e o caminho que ele percorre até chegar ao seu apartamento no último andar: ele caminha através de apartamentos alheios, sobe lances de escada e ainda no caminho encontra diversos vizinhos. Uma de suas principais distrações é o simples ato de ajustar a vidraça da janela para que o reflexo do sol faça o passarinho da gaiola do vizinho cantar.

Naquele dia, o Sr. Hulot ficou encarregado de tomar conta do sobrinho. Após buscá-lo na escola, ele leva Gerard para um passeio nos arredores de seu bairro. Logo fazendo amizade com as crianças locais, o menino descobre o prazer de atividades simples como comer doce do vendedor da rua e fazer brincadeiras como distrair os pedestres na rua para que estes caminhem de encontro a um poste. Gerard vê então em seu tio uma válvula de escape do estilo de vida de seus pais, tendo a oportunidade de ser uma criança como as demais. Utilizando o menino como ponte, Tati retrata na tela o exacerbado contraste entre o mundo do Sr. Hulot e do Sr. e Sra. Arpel. Assim como o tio, Gerard se sente uma figura estranha em sua própria casa. O cotidiano de seus pais representa a idéia do simulacro, onde a simulação de uma realidade mais fácil e mais moderna é mais atraente do que a verdadeira realidade. “Os homens criam as ferramentas: estas, por sua vez, recriam os homens” afirmou o filósofo Marshall McLuhan em um de seus diversos estudos sobre a comunicação. Tal pensamento se estende ao comportamento dos personagens da alta classe de Meu Tio, pois as regras de sua conduta são ditadas pelas ferramentas ao seu redor. A casa dos Arpel, por exemplo, é equipada com a mais variada sorte de objetos e ornamentos eletrônicos que supostamente deveriam simplificar a vida de seus moradores, mas que apenas os mantém mais afastados. A casa em si atua como outro personagem do filme: um ser grande e imponente, cujas janelas nos andares superiores assemelham-se a dois grandes olhos que observam os habitantes. Não apenas isso, a casa ganha parece ganhar vida própria, chegando ao ponto de aprisionar seus donos na garagem em uma das cenas mais cômicas do filme.

Com a finalidade de demonstrar mais agudamente como as relações são prejudicas pela intervenção da tecnologia, Jacques Tati resolve investir em cenas relativamente longas demonstrando o cotidiano dos moradores do bairro do Sr. Hulot. De forma natural, as pessoas conversam, fofocam, brigam, xingam, mas, acima de tudo, confraternizam e se divertem juntas. Cercados por altos muros, as relações do casal Arpel com o mundo esterno se resumem aos amigos de trabalho do marido e à vizinha de classe alta que acabara de se mudar. As relações burguesas são formadas por jogos de aparências, conversas superficiais, sorrisos falsos e laços emocionais arranjados. Assim como o Vagabundo de Chaplin se sente desconfortável em meio à tecnologia, o Sr. Hulot se sente recuado entre este meio que não lhe é familiar. Conseqüentemente, a tentativa da Sra. Arpel de unir o irmão com a vizinha e de lhe dar um cargo na empresa do marido falham terrivelmente. Ao invés de criar peças específicas, Tati aproveita tais situações para injetar a fita com seu característico humor. Abolindo quase totalmente o uso de closes no filme, o diretor mostra a preferência por planos abertos, o que dá valor à figura peculiar de seu personagem e nos mantém distantes da fatia mais fria e impessoal do mundo de Meu Tio. Assim como Chaplin, Keaton e Laurel e Hardy, Tati faz uso de um humor visual, favorecendo a ação sobre os diálogos. Estes, por sua vez, não possuem um grande papel no filme, dando espaço ao criativo uso do design de som: os efeitos sonoros das cenas ambientadas em meio à classe alta são mecânicos e artificiais, contrastando com os sons naturais e orgânicos do subúrbio.

Ao início de Meu Tio, os créditos da produção são dispostos em placas de construção, com imagens das obras de um prédio sendo usada como pano de fundo. A seguir, o título do filme aparece escrito em uma parede do bairro do Sr. Hulot. O que Jacques Tati quis dizer com esta justaposição de imagens, supõe-se, é que lugares como este pequeno subúrbio e os estilos de vida que os acompanham estão sendo cada vez mais cercados e substituídos por grandes edifícios e corporações. O que era ainda um período de transição em 1958 atualmente é uma realidade cultural, o que apenas contribui para tornar Meu Tio ainda mais ressonante nos dias de hoje do que quando foi lançado.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

OS IMPERDOÁVEIS

Os imperdoáveis (Unforgiven, 1992)
Dirigido por Clint Eastwood
Por Flávio Brun

Desde o começo da história do cinema se fazem filmes sobre os bravos cavaleiros que se aventuravam no oeste dos Estados Unidos para domar o território e lá estabelecer uma parte da nação. Tais desbravadores normalmente tinham que lidar com as adversidades do território, na grande maioria das vezes índios (quando presentes, sempre maus) ou algum vizinho branco. Em geral, os personagens centrais da história sempre eram pessoas boas, mesmo com um passado não tão bom, e essa era a essência dos filmes western (palavra essa que se refere à parte oeste) americanos. O que toda essa definição de western tem a ver com "Os imperdoáveis"? Nada.

O ano é 1880 e o local é Big Whiskey, Wyoming. Em uma noite chuvosa, uma prostituta tem seu rosto retalhado por ter dado uma leve risada devido ao pequeno "instrumento" de seu cliente, porém a justiça não é algo presente na cidadezinha. O xerife local, Little Bill (Gen Hackman, em uma grande performance) faz um acordo com os culpados pelo ato bárbaro e os mesmos são soltos com a condição de entregarem seis pôneis ao dono do prostíbulo em que a jovem prostituta trabalhava. Buscando a justiça merecida, as outras comerciantes do sexo resolvem juntar suas economias para servir de recompensa a quem matar os dois homens responsáveis pela barbárie. Com 1000 dólares em jogo ao primeiro matador, não demora a aparecer em Big Whiskey quem se interesse pelo prêmio.

William Munny (o já lendário Clint Eastwood), um fazendeiro com dois filhos e uma criação de porcos tem em seu passado uma grande mancha: era um beberrão e um assassino de sangue frio que, como dito por ele mesmo em certo momento, "matava qualquer coisa que atravessasse seu caminho". Sua reputação faz com que Schofield Kid (Jaimz Woolvett, com um sotaque caipira extremamente falso) venha à sua procura para ajudá-lo a exterminar a dupla de cowboys de Big Whiskey envolvidos no incidente do prostíbulo. Relutante no começo, pois seu casamento havia lhe curado das maldades do mundo (porém não eliminado a culpa de suas ações), Munny resolve procurar seu amigo Ned Logan (Morgan Freeman) e os três partem em direção a Big Whiskey.

Se aprofundar mais na sinopse seria inútil, e apenas geraria spoilers. A descrição do filme acima serve como contraponto a praticamente todos os clichês e noções básicas de filmes de faroeste, e o resultado pode ser considerado como uma das grandes obras-primas do gênero.

"Os imperdoáveis" difere dos outros westerns americanos, basicamente, pela natureza dos personagens que permeam a história. O "mocinho" possui um passado de crimes terríveis, que apenas a lembrança o faz corroer-se por dentro. Também é único no ponto de que as ações por ele cometidas são escancaradas de tal forma que o vemos como uma pessoa de quem se deve temer, e não admirar. As mulheres, aqui representadas pelas prostitutas, não são passivas a tudo que ocorre ao redor delas e isso não quer dizer que são pessoas puras. Na verdade, a pessoa que mais se interessaria com as mortes dos homens do caso que serve de estopim para todos os acontecimentos, a moça que teve seu rosto retalhado, permanece boa parte do filme indiferente a todo o resto. Suas companheiras são mais vingativas, porém suas razões são matéria de longa discussão. O xerife em certo momento diz: "não gosto de assassinos nem homens de baixo caráter", porém ele é o menos qualificado para fazer tal afirmação. Tudo isso ajuda a construir o clima denso que a obra possui.

Uma dos pontos interessantes de serem analisadas nesse filme é o próprio título. A quem ele se refere, quem são os imperdoáveis? Será que são os homens do bordel que não recebem seu perdão nem após a morte e continuam odiados pelas prostitutas? O mais provável é que imperdoáveis são os homens em cujos passados há a culpa gerada pelo crimes cometidos, homens cujo arrependimento não irá apagar os maus feitos. Munny é a figura da alma torturada por suas ações regressas, e a única razão pela qual resolve fazer parte de crimes é para dar um futuro melhor a seus filhos. A violência é parte presente em boa parte da película, seja em histórias contadas (histórias essas que dariam facilmente mais um filme) ou em ações dos personagens, porém em momento algum é mostrada como algo justificável ou que tenha fins benéficos.

Há elementos que apenas certos estilos de filmes podem oferecer de forma satisfatória, e um dos trunfos dos westerns é poder proporcionar a quem assiste um espetáculo visual com campos vastos e belíssimas paisagens. "Os imperdoáveis" mostra toda a beleza exterior dos campos do Wyoming para contrastar com a feiura interna das pessoas que lá habitam. A fotografia usa de forma primorosa as cores, e em vários momentos apenas vemos sombras em meio a um fundo de cores que saltam da tela.

Desde sempre, os westerns sempre possuiram sua legião de adoradores. No começo, o astro era John Wayne. Nas décadas de 60 e 70, porém, a pessoa associada aos filmes de faroeste era Clint Eastwood. O ator norte-americano se fez notar-se em filmes italianos de bang bang, e o público adorava. Infelizmente, o gênero não sobreviveu à era pós Guerra nas Estrelas, e as pistolas foram trocadas por sabres de luz. Fiel às suas origens, Eastwood permite que o gênero dê seu último suspiro e descanse em paz. Aparentemente o público tende a ser cínico com seus próprios gostos, e os westerns tiveram o mesmo destino dos musicais: um dia adorados pelo público e crítica, no outro esquecidos e esnobados. Os verdadeiros fãs, porém, jamais os esquecerão.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

TEMPOS MODERNOS

Tempos Modernos (Modern Times, 1936)
Dirigido por Charles Chaplin
Por Matheus Mocelin Carvalho

“Levante a cabeça - nunca desista! Nós iremos nos virar!” diz Charles Chaplin ao final de Tempos Modernos, uma cena de caráter tão pungente quanto otimista, na medida em que o Vagabundo e sua companheira caminham em direção ao horizonte incerto. Infelizmente para Chaplin, Tempos Modernos selou o futuro do veículo que o trouxera fama mundial: o cinema mudo. Assistir ao filme não significa apenas presenciar o último suspiro de uma forma de arte extinta, mas também a última chance do público de ver o comediante encarnando seu personagem mais famoso, o eterno Vagabundo, que seria aposentado após esta produção (ainda que um barbeiro judeu em O Grande Ditador apresente mais do que uma leve semelhança com o Vagabundo). Assim como seu criador, o personagem teria problemas em se adaptar a um mundo onde as risadas deixam de ser a trilha sonora do humor e os efeitos sonoros ditam a ordem. Tempos Modernos representa Chaplin ao mesmo tempo em sua forma mais pura e sua forma mais política, esta última que seria favorecida em suas produções faladas nos anos a seguir.

A gênese de Tempos Modernos veio após um tour de dezoito meses feito por Chaplin através da Europa, onde conheceu personalidades, discutiu problemas sociais e expressou sua visão a respeito do uso das máquinas como algo a ser usado a favor do homem ou algo que poderia lhe trazer imensuráveis prejuízos. Ao voltar para os EUA, ele encontrou uma nação abatida pela Grande Depressão, onde o desemprego em massa crescia a cada dia e onde a máquina reinava sobre seus trabalhadores explorados e mal pagos. Embutido de uma temática política, cada fotograma de Tempos Modernos reflete o ponto de vista de Chaplin sobre a modernização das empresas, a produção em massa (uma crítica quase direta a Henry Ford), o desemprego e a luta do proletariado contra seus empresários capitalistas. Ainda que não assumindo totalmente uma face pró-marxista, seus ideais aqui representados certamente estabeleceram alguma relação com as acusações de comunismo que recebeu nos anos cinqüenta, resultando em sua reclusão para a Europa.

Ao início de Tempos Modernos (“Uma história sobre a indústria, a iniciativa privada – humanidade em busca da felicidade” dizem os créditos iniciais contrapostos a um relógio), um paralelo pouco sutil mostra a imagem de um rebanho de ovelhas em movimento sendo dissolvida na imagem de um grupo de trabalhadores marchando rumo ao trabalho. Numa das grandes empresas onde as máquinas reinam, um peculiar operário (Chaplin) tem a função de apertar porcas em uma linha de montagem em série. Supervisionando a produção, o presidente da companhia (Allan Garcia) faz uso de monitores gigantes espalhados pela fábrica para controlar seus empregados (o filme prevê o Big Brother com cerca de cinco décadas de antecedência). Explorado à exaustão, sendo até mesmo cobaia de um experimento em como alimentar funcionários de forma mais rápida, o pobre Vagabundo acaba sofrendo um colapso nervoso. Sendo engolido por uma das máquinas (em uma das cenas mais antológicas do cinema), o baixinho descontrolado se torna o responsável por uma série de incidentes que o levam diretamente para a prisão.

Atrás das grades, o agora desempregado trabalhador acaba acidentalmente se tornando um herói entre os policiais, recebendo sua própria cela e uma série de regalias. Já em outra parte da cidade, uma jovem pobre (Paulette Goddard, mais uma das inúmeras companheiras de Chaplin na vida real) rouba para alimentar seu pai e suas duas irmãs. Quando o patriarca da família é morto, ela se vê obrigada a fugir para escapar do juizado de menores. Solto da prisão por boas maneiras, o Vagabundo agora se encontra pelas ruas a procura de um emprego, sentindo falta de sua vida sem preocupações na cadeia. Em outra de uma série de coincidências, ele e a garota acabam se encontrando, vagando juntos em busca de um lar e de um trabalho.

Graças ao talento de seu criador, Tempos Modernos funciona em diversos níveis: além de ser uma carta de protesto de Chaplin colocada em celulóide, a obra demonstra ser não apenas eficaz crítica à industrialização, mas acima de tudo um ótimo entretenimento. Sendo exibido ainda hoje em escolas e programas de treinamento, o filme continua a ser relevante em tempos atuais, onde a globalização e a tecnologia são as principais causas do desemprego estrutural. Caracterizando os problemas sociológicos da década de 30, Tempos Modernos apresenta funcionários explorados por seus patrões, escravos de um sistema capitalista onde o relógio dita as ordens do dia. O imperialismo das máquinas não apenas colabora com o desemprego de um país em crise, mas também torna mecânico o trabalho de seus operários: em uma linha de montagem, o Vagabundo e seus companheiros são ordenados a passar horas diárias executando a mesma função repetidamente. As lacunas existentes entre as funções do homem e as funções da máquina se tornam cada vez mais abstratas a ponto de, em uma peculiar comparação, o pobre trabalhador ser engolido pela máquina onde trabalha, sendo arrastado por entre as engrenagens da mesma - o homem faz parte da máquina, mas a mesma não pode funcionar sem a mão humana. É curioso observar como o único papel da tecnologia no filme é extrair proveito dos indivíduos, a exemplo de quando o Vagabundo é obrigado a testar uma engenhoca que supostamente diminuiria o tempo de refeição dos operários.

Através de suas criações, Chaplin sempre teve o poder de estabelecer uma ligação direta com o grande público, sendo que quando Tempos Modernos foi produzido, este era composto em sua maioria por pessoas desempregadas ou então com grandes dificuldades financeiras. No caso dos personagens do filme, o caráter dos mesmos é muitas vezes definido por seu status quo: enquanto o presidente da companhia é um homem autoritário disposto a explorar seus trabalhadores ao máximo de suas forças, os assaltantes que roubam a loja de departamentos apenas o fazem por não terem o que comer. O roubo também é justificado através da personagem da menina das ruas, mais uma das páreas da sociedade que sofreu diretamente os efeitos da depressão. Interpretada com perspicácia por Paulette Godard, ela é a companheira ideal para Chaplin, responsável por muitos dos momentos tenros que são característicos da obra do diretor. No entanto, o que faz todas as críticas sociais funcionarem tão bem são suas intersecções com momentos de humor, instigando as percepções cognitivas do público sem subestimá-las. Assistir a este filme acompanhado de uma platéia é o bastante para atestar a eficiência do humor chaplinesco mais de setenta anos após seu lançamento original.

Produzido quase uma década após o advento de som no cinema, Tempos Modernos foi planejado originalmente como um filme falado. Chaplin, no entanto, resolveu ser fiel às suas origens, e ainda que o filme apresente uma trilha musical (composta por ele mesmo) e alguns efeitos sonoros, este é, em sua essência, um filme mudo. Como seus filmes futuros provariam, o cineasta não lidava tão bem com as palavras quanto lidava com uma narrativa baseada em intertítulos e diálogos sugeridos. Aqui, a dialética de Chaplin é demonstrada através do humor, não apresentando a necessidade dos discursos abertos e inflamados que veríamos no ótimo O Grande Ditador e no mediano Um Rei em Nova York. Apesar da tentação de dar voz ao personagem, uma versão falada do Vagabundo provavelmente não se mostraria verdadeira; Perderia sua qualidade universal através da barreira do idioma e também abstrairia a sua expressiva comunicação em pantomima. Deste modo, a única vez em que o Vagabundo possui voz neste ou qualquer outro filme é durante sua clássica apresentação como cantor no café, sendo que as letras da mesma são escritas em um idioma inexistente e incompreensível. É notável que, com exceção desta cena, os únicos momentos onde ouvimos diálogos no filme apresentam estes processados através de algum veículo eletrônico: o chefe da fábrica através do monitor, o vendedor eletrônico que apresenta a máquina de alimentação e um programa noticiário no rádio. Assim como esses aparelhos demonstram a opressão da tecnologia sobre o trabalhador e o homem comum, Chaplin (deliberadamente ou não) também sintetiza a soberania do som sobre o cinema mudo. Felizmente para o público, as obras de Chaplin teriam uma longevidade muito maior do que a arte que o consagrou.