sexta-feira, 27 de julho de 2007

DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS

Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976)
Dirigido por Bruno Barreto
Por Matheus Mocelin Carvalho

Baseado no clássico literário de Jorge Amado, Dona Flor e Seus Dois Maridos de Bruno Barreto é provavelmente a obra mais popular do cinema brasileiro. Lançado em 1976, o filme atraiu aos cinemas nacionais mais de 12 milhões de espectadores (ainda o filme nacional mais assistido), tendo ainda uma vida posterior de sucesso nos cinemas internacionais (o filme fez de Sônia Braga uma estrela nos Estados Unidos). Talvez uma das principais chaves desse sucesso seja que Barreto soube ir ao encontro de um público ainda oprimido pela ditadura militar, necessitado de ver cores e sensualidade na tela, mesmo que a atual realidade fosse totalmente adversa. Ao contrário de filmes de cineastas como Glauber Rocha e Ruy Guerra, Dona Flor não exige maiores esforços intelectuais para ser apreciado. Era basicamente o filme que o público queria ver: uma obra descompromissada cuja maior função é o entretenimento, e ainda acompanhada de sensuais cenas de uma Sônia Braga em sua melhor forma.

O filme tem início no carnaval de 1943, onde Vadinho (José Wilker), um incorrigível mulherengo e apostador, morre repentinamente, deixando para trás Flor (Sônia Braga), sua desconsolada mulher. Apesar das escapadas diárias de Vadinho e das freqüentes discussões, Flor era uma esposa dedicada e apaixonada, sendo que o casal tinha uma vida feliz na cama. Sozinha, ela acaba se envolvendo e logo depois se casando com Teodoro Madureira (Mauro Mendonça), o farmacêutico da cidade. Flor encontra no novo companheiro o marido fiel que nunca encontrou em Vadinho, e passa a ter uma vida estável e aparentemente feliz, mas da qual ela logo se cansa. Flor sente mesmo falta é do prazer carnal e do relacionamento imprevisto que tinha com o antigo marido e, de tanto chamá-lo em pensamento, Vadinho um dia aparece nu em sua cama, sendo que apenas Flor pode vê-lo. A moça se sente então dividida entre os dois homens, não querendo trair aquele que lhe dá tanto amor e não querendo resistir ao que lhe dá prazer.

Como o enredo do filme já pode deixar claro, Dona Flor e Seus Dois Maridos é o que podemos chamar de um exemplo do cinema escapismo, não devendo ser necessariamente avaliado pela sua profundidade ou pela significância de sua história. É um filme produzido simplesmente com o intuito de divertir seu público, e este é um papel que a obra exerce bem. Dona Flor é protagonizado pela figura do adorável vagabundo, um sujeito que, apesar de seu caráter duvidoso e do como destrata a heroína, consegue ganhar a simpatia do espectador com seu infame “jeitinho brasileiro” de levar a vida. Flor, a personagem mais complexa da história, representa a boa moça que é recatada por fora, mas que arde em chamas por dentro. Ela quer a estabilidade de uma vida conjugal, mas também não consegue abrir mão dos prazeres da vida carnal. Flor precisa dos dois maridos para a completarem e, assim, satisfaz os dois pólos opostos de sua personalidade. As ótimas atuações contribuem imensamente com a caracterização dos personagens, com o trio de protagonistas sendo o maior destaque (e ao contrário de alguns dos filmes que faria depois, aqui Sônia Braga pode mostrar que seu trabalho não se resumia apenas a mostrar seu belo corpo).

O diretor Bruno Barreto mostra seu talento para contar histórias ao optar por escolhas narrativas que fogem do que poderia se tornar banal nas mãos de outro diretor. A morte de Vadinho, por exemplo, é mostrada logo no início do filme, e sua relação com Flor é vista através de um flashback. Criando uma expectativa crescente em relação ao personagem, antes da apresentação de Vadinho escutamos as divergentes opiniões em relação a ele das pessoas que o cercavam (em um início que lembra o prólogo de Lawrence da Arábia de David Lean). O filme apresenta uma de suas maiores falhas no terceiro ato quando, após algumas cenas com o ritmo mais lento, parece querer apressar a história para chegar logo a sua conclusão, o que acaba prejudicando o maior fio narrativo da obra (a relação de Flor e o fantasma). Vale notar que, apesar da fama adquirida por Dona Flor e Seus Dois Maridos por suas provocantes cenas de sexo, Barreto consegue equilibrar bem a linha entre a comédia e a pornochanchada, sabiamente escolhendo dar maior destaque ao humor do que ao sexo, contrariando a política do cinema brasileiro da época.

Uma polêmica que cercou o filme entre os cineastas da época foi seu elevado orçamento 5,5 milhões de cruzeiros, cerca de dez vezes mais que o orçamento padrão para um filme brasileiro da época. Enquanto muitos produtores não conseguiam a verba necessária para a produção de seus filmes, Bruno Barreto conseguiu do Estado o financiamento para fazer um filme milionário, algo que não foi bem aceito entre outros diretores brasileiros. O público, no entanto, certamente parece não ter se importado.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

MINHA BELA DAMA

Minha bela dama (My fair lady, 1964)
Dirigido por George Cuckor
Por Flávio Brun

Houve um tempo em que o cinema era uma forma de arte totalmente diferente em comparação ao divertimento pipoca que temos atualmente. Os filmes eram produções grandiosas, levavam anos para serem feitos e o público esperava por anos curiosos pela menor notícia sobre a produção, as estréias eram eventos de gala, as apresentações em estilo de espetáculo com abertura, intervalo e entreato (nos filmes mais longos). Enfim, fazer cinema era mais que apenas uma forma de entreter as massas. Nesse período que alguns dos grandes musicais do cinema estadunidense foram feitos, e um dos mais adoráveis deles foi "Minha bela dama".

Em uma noite chuvosa, à entrada de um teatro, um professor de fonética encontra uma moça pobre que fala terrivelmente mal. Sua reação não é complacência para com a moça, e sim asco, dizendo que sua fala não é digna dos pilares do lugar onde se encontram. Henry Higgins (Rex Harrison), o professor em questão, confiante de seu talento e sempre orgulhoso, brinca sobre uma aposta com o Coronel Pickering (Wilfrid Hyde-White) de que em seis meses ele seria capaz de tornar aquela criatura simplória em uma verdadeira dama. No dia seguinte, Eliza Doolittle (Audrey Hepburn) vai atrás do professor para que este possa fazer algo e que ela possa se tornar algo mais do que é.

A história de menina pobre que recebe uma oportunidade de transformar-se em alguém importante é uma das mais conhecidas e contadas, mas em "Minha bela dama" é contada de tal maneira que a impressão que dá é que estamos ouvindo-a pela primeira vez. Em todas as recontagens de histórias ao estilo Cinderella, há uma fada madrinha, mas em nenhum outro filme há uma fada madrinha como Henry Higgins. Rex Harrison provê um dos personagens mais marcantes já vistos, com uma mistura de superioridade aristocrática, uma certa arrogância e ótimas falas. O treinamento de Eliza com Higgins proporciona risadas dignas das melhores comédias, em momento algum sendo clichê ou beirando o pastelão. Ver Higgins exigindo que Eliza pronuncie suas vogais corretamente ou a moça torcendo na corrida de cavalos estão entre as cenas mais engraçadas já vistas na telona.

A produção de "Minha bela dama" contou com uma publicidade imensa. Para começar, havia sido o valor mais caro já pago para adaptação de uma obra para o cinema (o filme foi uma adaptação da peça da Broadway). Outro ponto foi a controvérsia em respeito da escolha de elenco: a atriz que interpretava Eliza na Broadway foi a então desconhecida Julie Andrews, e devido aos custos da produção, o estúdio não quis correr riscos e chamou a estrela da época, Audrey Hepburn. O fato foi favorável a Julie Andrews, pois ficou livre para fazer Mary Poppins, filme por qual ganhou o Oscar de melhor atriz. Para Audrey Hepburn, não foi tão favorável, pois deixou-a com uma imagem de "ladra" de papéis (em "Bonequinha de luxo", três anos antes, ela havia ficado com o papel idealizado para Marilyn Monroe).

A controvérisa em respeito da escolha da atriz para o papel de Eliza não deveria ter sido motivo de tanto alarde. O único problema de Audrey Hepburn para o papel é que sua voz não era a mais ideal para canto, e visto que esse é um musical, isso faz diferença, mas não se tomarmos em conta o número de atores e atrizes dublados em canções ao longo da história (e mal dublados, muitas vezes, o que não é o caso aqui). Julie Andrews possuia (e ainda possui, por sinal) uma bela voz para canto, o que a tornaria mais adequada para a personagem, e garanto que ela teria feito um belo trabalho como Eliza no primeiro ato do filme, em que Eliza é pobre e "gente do povo", mas no segundo ato, em que a personagem se torna uma bela e refinada dama, Audrey era simplesmente insubstituível. Foram poucas as atrizes que ao longo da história que puderam ser símbolos de talento e elegância, e Audrey foi uma delas. Julie Andrews também tem sua classe e estilo, porém na época ela era mais apropriada para personagens mais "sapecas", como a Maria de "A noviça rebelde".

"Minha bela dama" é uma extravagância visual e sonora, típica das grandes produções dos anos 60. Cada aspecto da produção visual foi extremamente bem trabalhado, e cada fotograma da película exibe com primor. Pioneiro em aspectos de som, esse foi o primeiro musical a ter parte das músicas gravadas usando microfones sem fios escondidos no figurino dos personagens. Falando em figurinos, este é outro dos aspectos em que o filme se destaca. As roupas usadas por Eliza após tornar-se a bela dama são belíssimas, e ajudam a realçar a beleza e classe natural que a atriz possui. Tão bom foi o desempenho técnico da equipe que o filme foi premiado com várias estatuetas na cerimônia do Oscar de 1964.

Apesar de todas suas qualidades, o filme peca em alguns momentos. Para aqueles que dizem não gostar musicais, esse deve ser evitado, pois os (poucos) pontos baixos do filme estão nas cenas cantadas. Em inglês, o termo "showstopper" se refere a números musicais elaborados e que prendem atenção, "parando o show" por assim dizer. As músicas que são showstoppers são, principalmente, as cantadas pelo pai de Eliza (Stanley Holloway). Além de parar o show porque são interessantes, à sua maneira, também param a narrativa completamente, e o filme poderia simplesmente ter sido feito sem elas. Além disso, as músicas cantadas por Higgins tendem a ser longas e, de certa forma, cansativas, por não serem músicas propriamente ditas, e sim frases sem rima faladas com certo ritmo. Algumas delas são peculiares, pois ao tentar expressar seu ponto de vista machista, torna a orientação sexual do personagem um tanto dúbia. Ainda no quesito musical, há a dublagem de Marni Nixon para a personagem de Audrey Hepburn. Nixon era uma das dubladoras mais famosas e competentes da época, tendo dublado Debora Kerr em "O rei e eu" e Natalie Wood em "Amor sublime amor" - neste último ela dublou duas personagens em uma mesma música, mostrando que é uma camaleoa vocal.

Uma obra que contempla tantos gêneros (musical, comédia, romance) tem tudo para dar certo e deve sempre ser lembrada. As melhores músicas de "Minha bela dama" são a melhor forma de descrever a experiência que é assistir a esse grande filme: uma obra "adoráver" e que uma vez vista, faz qualquer um dizer que "poderia dançar a noite inteira e ainda implorar por mais".

segunda-feira, 9 de julho de 2007

MEU TIO

Meu Tio (Mon Oncle, 1958)
Dirigido por Jacques Tati
Por Matheus Mocelin Carvalho

Assim como a imagem de Charles Chaplin ficou eternizada no consenso popular através de seu personagem Vagabundo, caracterizado pelo seu bigode, bengala e chapéu, a primeira relação que pode ser feita ao nome de Jacques Tati é de uma figura alta, de cachimbo e chapéu, vestindo um longo casaco e com um peculiar modo de caminhar. Não se trata de uma descrição do ator e diretor francês, mas sim de seu personagem, o Sr. Hulot, que fez sua primeira aparição no filme As Férias do Sr. Hulot. Meu Tio, o filme subseqüente do diretor, apresenta o retorno do cômico personagem, desta vez entrando em conflito com a cultura consumista importada dos EUA que invadiu a França no período pós-guerra.

Seguindo a linhagem de Chaplin, que produzia obras com um viés político e social, através de Meu Tio Tati exerce uma crítica à modernização, à perda de valores interpessoais e à criação de uma sociedade hedonista que busca o prazer através do consumo. Se com Tempos Modernos Chaplin mostrou como a industrialização estava levando o homem à alienação social, Meu Tio mostra os resultados desta época. Caracterizando os frutos desta sociedade pós-moderna, o filme nos apresenta a família Arpel, composta pelo Sr. e a Sra. Arpel (Jean-Pierre Zola e Adrienne Servatie) e seu jovem filho Gerard (Alain Becourt). Localizados em um bairro de classe alta do subúrbio de Paris, os Arpel vivem em uma residência cuja construção poderia ter sido extraída diretamente de um guia de Art Déco: uma enorme mansão composta por vastos cômodos, uma garagem de porta mecanizada, uma vasta fachada com um jardim cercado por altos muros e, o símbolo máximo da ostentação, uma fonte em forma de peixe que a Sra. Arpel se orgulha em exibir aos visitantes. Todas as manhãs, o Sr. Arpel dirige o pequeno Gerard para a escola a caminho do trabalho, enquanto a matriarca mecanicamente cuida dos serviços domésticos todas as manhãs. É curioso perceber como, logo na abertura do filme, Tati nos apresenta a um mundo onde tudo é imaculadamente perfeito na superfície: a família amorosa que poderia ter saído de um filme norte-americano cercada por uma casa onde tudo brilha e onde a sra. Arpel metodicamente se preocupa com os mínimos detalhes em relação a limpeza da residência e do carro do marido. Mais tarde ficamos sabendo, no entanto, que Gerard é considerado uma “criança problema” por seus pais, pois não se preocupa com os padrões ditados pela família e dá maior atenção às brincadeiras do que aos estudos.

Em um bairro mais humilde da cidade, mas onde o charme e a simplicidade da velha França ainda não cederam à modernização, encontra-se o Sr. Hulot (Tati), irmão da Sra. Arpel. Contrastando com a moradia perfeita e estéril da irmã, ele vive em uma vila onde os moradores moram próximos uns aos outros e inevitavelmente se cumprimentam todas as manhãs; onde o gari varre as ruas e conversa incessantemente com o ocasional pedestre e onde as pessoas se unem ao redor das barracas de frutas e legumes para não perderem a última oferta da feira. Em um dos melhores planos do filme, vemos o grande sobrado onde o sr. Hulot mora e o caminho que ele percorre até chegar ao seu apartamento no último andar: ele caminha através de apartamentos alheios, sobe lances de escada e ainda no caminho encontra diversos vizinhos. Uma de suas principais distrações é o simples ato de ajustar a vidraça da janela para que o reflexo do sol faça o passarinho da gaiola do vizinho cantar.

Naquele dia, o Sr. Hulot ficou encarregado de tomar conta do sobrinho. Após buscá-lo na escola, ele leva Gerard para um passeio nos arredores de seu bairro. Logo fazendo amizade com as crianças locais, o menino descobre o prazer de atividades simples como comer doce do vendedor da rua e fazer brincadeiras como distrair os pedestres na rua para que estes caminhem de encontro a um poste. Gerard vê então em seu tio uma válvula de escape do estilo de vida de seus pais, tendo a oportunidade de ser uma criança como as demais. Utilizando o menino como ponte, Tati retrata na tela o exacerbado contraste entre o mundo do Sr. Hulot e do Sr. e Sra. Arpel. Assim como o tio, Gerard se sente uma figura estranha em sua própria casa. O cotidiano de seus pais representa a idéia do simulacro, onde a simulação de uma realidade mais fácil e mais moderna é mais atraente do que a verdadeira realidade. “Os homens criam as ferramentas: estas, por sua vez, recriam os homens” afirmou o filósofo Marshall McLuhan em um de seus diversos estudos sobre a comunicação. Tal pensamento se estende ao comportamento dos personagens da alta classe de Meu Tio, pois as regras de sua conduta são ditadas pelas ferramentas ao seu redor. A casa dos Arpel, por exemplo, é equipada com a mais variada sorte de objetos e ornamentos eletrônicos que supostamente deveriam simplificar a vida de seus moradores, mas que apenas os mantém mais afastados. A casa em si atua como outro personagem do filme: um ser grande e imponente, cujas janelas nos andares superiores assemelham-se a dois grandes olhos que observam os habitantes. Não apenas isso, a casa ganha parece ganhar vida própria, chegando ao ponto de aprisionar seus donos na garagem em uma das cenas mais cômicas do filme.

Com a finalidade de demonstrar mais agudamente como as relações são prejudicas pela intervenção da tecnologia, Jacques Tati resolve investir em cenas relativamente longas demonstrando o cotidiano dos moradores do bairro do Sr. Hulot. De forma natural, as pessoas conversam, fofocam, brigam, xingam, mas, acima de tudo, confraternizam e se divertem juntas. Cercados por altos muros, as relações do casal Arpel com o mundo esterno se resumem aos amigos de trabalho do marido e à vizinha de classe alta que acabara de se mudar. As relações burguesas são formadas por jogos de aparências, conversas superficiais, sorrisos falsos e laços emocionais arranjados. Assim como o Vagabundo de Chaplin se sente desconfortável em meio à tecnologia, o Sr. Hulot se sente recuado entre este meio que não lhe é familiar. Conseqüentemente, a tentativa da Sra. Arpel de unir o irmão com a vizinha e de lhe dar um cargo na empresa do marido falham terrivelmente. Ao invés de criar peças específicas, Tati aproveita tais situações para injetar a fita com seu característico humor. Abolindo quase totalmente o uso de closes no filme, o diretor mostra a preferência por planos abertos, o que dá valor à figura peculiar de seu personagem e nos mantém distantes da fatia mais fria e impessoal do mundo de Meu Tio. Assim como Chaplin, Keaton e Laurel e Hardy, Tati faz uso de um humor visual, favorecendo a ação sobre os diálogos. Estes, por sua vez, não possuem um grande papel no filme, dando espaço ao criativo uso do design de som: os efeitos sonoros das cenas ambientadas em meio à classe alta são mecânicos e artificiais, contrastando com os sons naturais e orgânicos do subúrbio.

Ao início de Meu Tio, os créditos da produção são dispostos em placas de construção, com imagens das obras de um prédio sendo usada como pano de fundo. A seguir, o título do filme aparece escrito em uma parede do bairro do Sr. Hulot. O que Jacques Tati quis dizer com esta justaposição de imagens, supõe-se, é que lugares como este pequeno subúrbio e os estilos de vida que os acompanham estão sendo cada vez mais cercados e substituídos por grandes edifícios e corporações. O que era ainda um período de transição em 1958 atualmente é uma realidade cultural, o que apenas contribui para tornar Meu Tio ainda mais ressonante nos dias de hoje do que quando foi lançado.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

OS IMPERDOÁVEIS

Os imperdoáveis (Unforgiven, 1992)
Dirigido por Clint Eastwood
Por Flávio Brun

Desde o começo da história do cinema se fazem filmes sobre os bravos cavaleiros que se aventuravam no oeste dos Estados Unidos para domar o território e lá estabelecer uma parte da nação. Tais desbravadores normalmente tinham que lidar com as adversidades do território, na grande maioria das vezes índios (quando presentes, sempre maus) ou algum vizinho branco. Em geral, os personagens centrais da história sempre eram pessoas boas, mesmo com um passado não tão bom, e essa era a essência dos filmes western (palavra essa que se refere à parte oeste) americanos. O que toda essa definição de western tem a ver com "Os imperdoáveis"? Nada.

O ano é 1880 e o local é Big Whiskey, Wyoming. Em uma noite chuvosa, uma prostituta tem seu rosto retalhado por ter dado uma leve risada devido ao pequeno "instrumento" de seu cliente, porém a justiça não é algo presente na cidadezinha. O xerife local, Little Bill (Gen Hackman, em uma grande performance) faz um acordo com os culpados pelo ato bárbaro e os mesmos são soltos com a condição de entregarem seis pôneis ao dono do prostíbulo em que a jovem prostituta trabalhava. Buscando a justiça merecida, as outras comerciantes do sexo resolvem juntar suas economias para servir de recompensa a quem matar os dois homens responsáveis pela barbárie. Com 1000 dólares em jogo ao primeiro matador, não demora a aparecer em Big Whiskey quem se interesse pelo prêmio.

William Munny (o já lendário Clint Eastwood), um fazendeiro com dois filhos e uma criação de porcos tem em seu passado uma grande mancha: era um beberrão e um assassino de sangue frio que, como dito por ele mesmo em certo momento, "matava qualquer coisa que atravessasse seu caminho". Sua reputação faz com que Schofield Kid (Jaimz Woolvett, com um sotaque caipira extremamente falso) venha à sua procura para ajudá-lo a exterminar a dupla de cowboys de Big Whiskey envolvidos no incidente do prostíbulo. Relutante no começo, pois seu casamento havia lhe curado das maldades do mundo (porém não eliminado a culpa de suas ações), Munny resolve procurar seu amigo Ned Logan (Morgan Freeman) e os três partem em direção a Big Whiskey.

Se aprofundar mais na sinopse seria inútil, e apenas geraria spoilers. A descrição do filme acima serve como contraponto a praticamente todos os clichês e noções básicas de filmes de faroeste, e o resultado pode ser considerado como uma das grandes obras-primas do gênero.

"Os imperdoáveis" difere dos outros westerns americanos, basicamente, pela natureza dos personagens que permeam a história. O "mocinho" possui um passado de crimes terríveis, que apenas a lembrança o faz corroer-se por dentro. Também é único no ponto de que as ações por ele cometidas são escancaradas de tal forma que o vemos como uma pessoa de quem se deve temer, e não admirar. As mulheres, aqui representadas pelas prostitutas, não são passivas a tudo que ocorre ao redor delas e isso não quer dizer que são pessoas puras. Na verdade, a pessoa que mais se interessaria com as mortes dos homens do caso que serve de estopim para todos os acontecimentos, a moça que teve seu rosto retalhado, permanece boa parte do filme indiferente a todo o resto. Suas companheiras são mais vingativas, porém suas razões são matéria de longa discussão. O xerife em certo momento diz: "não gosto de assassinos nem homens de baixo caráter", porém ele é o menos qualificado para fazer tal afirmação. Tudo isso ajuda a construir o clima denso que a obra possui.

Uma dos pontos interessantes de serem analisadas nesse filme é o próprio título. A quem ele se refere, quem são os imperdoáveis? Será que são os homens do bordel que não recebem seu perdão nem após a morte e continuam odiados pelas prostitutas? O mais provável é que imperdoáveis são os homens em cujos passados há a culpa gerada pelo crimes cometidos, homens cujo arrependimento não irá apagar os maus feitos. Munny é a figura da alma torturada por suas ações regressas, e a única razão pela qual resolve fazer parte de crimes é para dar um futuro melhor a seus filhos. A violência é parte presente em boa parte da película, seja em histórias contadas (histórias essas que dariam facilmente mais um filme) ou em ações dos personagens, porém em momento algum é mostrada como algo justificável ou que tenha fins benéficos.

Há elementos que apenas certos estilos de filmes podem oferecer de forma satisfatória, e um dos trunfos dos westerns é poder proporcionar a quem assiste um espetáculo visual com campos vastos e belíssimas paisagens. "Os imperdoáveis" mostra toda a beleza exterior dos campos do Wyoming para contrastar com a feiura interna das pessoas que lá habitam. A fotografia usa de forma primorosa as cores, e em vários momentos apenas vemos sombras em meio a um fundo de cores que saltam da tela.

Desde sempre, os westerns sempre possuiram sua legião de adoradores. No começo, o astro era John Wayne. Nas décadas de 60 e 70, porém, a pessoa associada aos filmes de faroeste era Clint Eastwood. O ator norte-americano se fez notar-se em filmes italianos de bang bang, e o público adorava. Infelizmente, o gênero não sobreviveu à era pós Guerra nas Estrelas, e as pistolas foram trocadas por sabres de luz. Fiel às suas origens, Eastwood permite que o gênero dê seu último suspiro e descanse em paz. Aparentemente o público tende a ser cínico com seus próprios gostos, e os westerns tiveram o mesmo destino dos musicais: um dia adorados pelo público e crítica, no outro esquecidos e esnobados. Os verdadeiros fãs, porém, jamais os esquecerão.