quinta-feira, 30 de agosto de 2007

SINFONIA DE PARIS

Sinfonia de Paris (An American in Paris, 1951)
Dirigido por Vincente Minnelli
Por Flávio Brun

Paris: nenhuma outra cidade no mundo seria tão adequada para servir de cenário para um filme visualmente estonteante, e foi a escolha perfeita para o grande musical de 1951 do diretor Vincente Minnelli. A cidade-luz esbanja charme, elegância e romantismo nessa belíssima produção, mesmo que a Paris usada esteja localizada nos estúdios da MGM.

A importância histórica de "Sinfonia de Paris" não pode ser ignorada. Apesar de simples, e por vezes até sem graça, ainda assim o filme foi responsável por uma revolução na forma de se fazer musicais na época. Em 1948, o filme inglês "Os sapatinhos vermelhos" inovou ao apresentar um balét de quinze minutos no meio da narrativa, e três anos mais tarde, "Sinfonia de Paris" incorporou a idéia de um grande número musical ao cinema estadunidense, ao pôr um espetáculo de dança grandioso (com dezesseis minutos!) como forma de encerramento do filme. A idéia deu tão certo que veio a ser usada em praticamente todos os musicais da década como, por exemplo, o fantástico "Broadway Mellody" de "Cantando na chuva", entre inúmeros outros.

O responsável pela criação do número símbolo do filme foi Gene Kelly, talvez o maior dançarino que as telas do cinema já viram. Seu estilo de dança é tão fluido que chega a nos dar a impressão de que sair dançando em meio às ruas é algo natural de se fazer. Tão bem sucedida foi a inserção do balé ao fim da película que rendeu inúmeros prêmios à produção, incluindo o Oscar de melhor filme, e um prêmio honorário a Gene Kelly por sua contribuição à sétima arte na área de dança - merecidíssimo, pois como mencionado anteriormente, seu trabalho aqui estabeleceu um padrão na forma de se fazer musicais.

Apesar da importância histórica, esse não é um filme perfeito, muito pelo contrário, sendo que o principal defeito se encontra na história em si - vazia e por muitas vezes desinteressante. Os personagens são pouco explorados e bastante estereotipados. Jerry Mulligan é o típico personagem de Gene Kelly: soldado, alegre e sempre cantando e dançando. Lise Bouvier (personagem de Leslie Caron) é a francesa charmosa e inocente que despropositalmente rouba o coração de Jerry, que não sabe que ela está para se casar com Henri Buriel (Georges Guetary), um amigo de Mulligan. Um dos poucos personagens interessantes é Milo Robers (Nina Foch), uma milionária que resolve dar uma ajuda monetária a Jerry, mas politicamente correta a ponto de não pedir (explicitamente) nada em troca. A história é simples (até demais) e subdesenvolvida no filme, servindo apenas de cabide para um grupo de canções e danças, sendo que poucas delas são memoráveis e bastante descartáveis. Ao término do filme, ficamos encantados com o grande balé, que não tem um significado importante para a narrativa, mas que ainda assim encanta, porém logo a seguir, na conclusão da história, o destino dos personagens toma um rumo tão implausível que é difícil crer que está acontecendo, apesar de estar diante de nossos olhos. Além do mais, Milo é totalmente esquecida na conclusão. O resultado é sairmos boquiabertos: pela dança e pelo encerramento irreal.

Mesmo com tantos defeitos narrativos, ainda assim há alguns pontos interessantes. A forma de apresentação dos personagens no começo do filme é bem criativa, com eles próprios dando suas descrições. Como diz o velho ditado, "conhece-te a ti mesmo que eu me conheço bem". Outro ponto positivo é a presença sempre marcante de Gene Kelly. Ele pode não ser o mais talentoso dos atores, mas seu carisma e talento na sua área compensam a falta de poder dramático.

A escolha de Leslie Caron, entretanto, não foi a mais acertada para o papel. Lise é para ser uma jovem linda, capaz de fazer os homens caírem a seus pés à primeira vista, porém Leslie é apenas charmosinha, e não tem o sex appeal que a personagem necessitava. Não que a atriz ideal seja um sex symbol como Marilyn Monroe, e sim alguém mais visualmente atraente que Caron.

Como sempre, o Oscar é uma premiação controversa, e é impossível agradar a todos. No ano de 1951, o grande vitorioso foi "Sinfonia de Paris", com seis estatuetas (o filme "Um lugar ao sol" recebeu o mesmo número de Oscar naquele ano). O fator merecimento é questionável, principalmente se analisarmos os concorrentes ao prêmio daquele ano. Os principais eram "Uma rua chamada pecado" e "Um lugar ao sol", e ambos eram mais aptos a saírem vitoriosos que "Sinfonia de Paris". "Uma rua chamada pecado" possuía o que o vencedor não tinha: uma trama elaborada, com um roteiro magnífico e poderosas atuações de todo o elenco, e o mesmo se aplica a "Um lugar ao sol". O único diferencial de "Sinfonia de Paris" se encontra em aspectos técnicos, como a bela fotografia no glorioso Technicolor (os outros dois concorrentes mencionados foram filmados em preto e branco), a perfeição visual de cada tomada característica dos filmes de Minnelli além, é claro, do tão mencionado número musical que revolucionou o cinema musical da época.

Praticamente todas as boas idéias de "Sinfonia de Paris" estão presentes em outros filmes superiores, porém é válido assisti-lo como marco histórico e um ponto de referência em matéria de como se faz um número musical. Para ver Gene Kelly em sua melhor forma, assista "Cantando na chuva". Para ver um belo musical de Minnelli, o recomendado é "A roda da fortuna". Mas se o tempo for curto e quiser unir bons aspectos de ambos, o recomendado é "Sinfonia de Paris". O resultado pode não ser tão satisfatório, mas no geral, diverte.

domingo, 12 de agosto de 2007

AMADEUS

Amadeus (Amadeus, 1984)
Dirigido por Milos Forman
Por Flávio Brun

O nome Amadeus pode não ser familiar para muitos, porém o nome Mozart sim. Wolfgang Amadeus Mozart certamente foi um dos maiores compositores de música clássica da história, e serviu de tema para o que veio a se tornar um dos melhores filmes já feitos. Em contrapartida, Antonio Salieri é um nome quase desconhecido por leigos no cenário de música clássica, mas tornou-se imortal nessa obra do cinema como seu protagonista. O material publicitário teve a audácia de expressar "tudo o que você ouviu é verdade", e nesse tom de farsa que o filme realmente sucede.

O filme é uma adaptação da peça homônima de Peter Shaffer e teve seu título genialmente usado para pôr sentido na obra. O nome do meio do famoso compositor tem como uma de suas traduções "amado de Deus", e o filme enfatiza isso pelos olhos de Salieri, outro compositor contemporâneo, porém que tem a ambição de fazer grandes coisas no nome do Senhor, porém falta-lhe o talendo, enquanto Mozart tem todo o talento que falta a Salieri, mas sem nenhum objetivo nobre. Primeiro guiado por admiração, depois inveja e ultimamente ódio por Mozart, o velho Salieri conta em forma de flashback como ele levou Mozart à morte.

O diretor Milos Forman, que quase uma década antes havia dirigido o premiadíssimo "Um estranho no ninho", apostou em nomes não muito conhecidos na época para grandes papéis em um filme caro, uma aposta arriscada que não poderia ter obtido resultado melhor. A escolha de F. Murray Abraham para o papel de Salieri fez com que o mundo fosse presenteado com uma das melhores interpretações que o público já viu (eu, pessoalmente, sempre o uso como padrão de referência de como um ator deve interpretar). O personagem criado por Abraham é a personificação da inveja em todos seus estágios, tendo seu ápice na velhice, decadente e incapaz de morrer, sendo obrigado a viver na eterna tortura de ver seu trabalho esquecido por todos e o de seu rival sempre lembrado, em uma humilhação constante. A força de expressão desse ator se mostra em todos os quadros em que ele está presente, e em praticamente todas as premiações daquele ano, ele conseguiu o prêmio de melhor ator, mais que merecidamente. Infelizmente, após "Amadeus", Abraham não obteve muitos papéis de destaque em grandes produções, mas em um filme ele fez o trabalho que muitos outros atores não conseguem em uma carreira.

Tal qual F. Murray Abraham, o ator Tom Hulce foi outro acerto da equipe de casting. O ator conseguiu eficientemente encarnar todos os estágios do complexo trabalho de retratar um gênio da música em sua trilha que passa entre glória e decadência, uma linha tênue entre a genialidade e a loucura. Como a maioria dos gênios da área artística, Mozart sofreu várias críticas em seu trabalho, e apenas após sua morte realmente foi reconhecido como merece - a cena do começo do filme em que o padre reconhece a música de Mozart e não a de Salieri demonstra isso com clareza. Como o filme tanto enfatiza, às vezes parece que Deus brinca em colocar os dons nas pessoas erradas, e Ele colocou o dom da mais bela música em um homenzinho vulgar, comum e sem nenhuma nobreza - enquanto Salieri era o oposto de Mozart. Em certo ponto do filme Mozart fala o que resume todo seu personagem: "Sou um homem vulgar, mas lhe asseguro que minha música não o é".

Há uma cena chave que justifica o ódio de Salieri por Mozart: em um momento, Mozart é apresentado ao imperador da Áustria (Jeffrey Jones), e o Salieri compõe uma pequena marcha como um presente simbólico para este que era seu ídolo de infância e cujo trabalho ele realmente admira. O processo de composição dessa marcha é mostrado, e vemos a dificuldade com que Salieri o fez, mas sempre grato e louvando a Deus por ter lhe dado a chance. Ao receber o presente, Mozart acaba humilhando Salieri ao dizer que sua marcha não funciona e começa a fazer alterações sem o menor esforço. A outra cena chave é no final, em que Mozart resolve ditar sua última obra para Salieri, este incapaz de acompanhar a genialidade do imortal compositor.

Todo filme é passível de segundas interpretações, e "Amadeus" não é exceção à regra. Há um núcleo de personagens composto pelo imperador da Áustria e seus conselheiros, além de Salieri, o compositor da corte. Nas primeiras vezes que assisti ao filme, as cenas em que esse grupo discutia entre si me parecia apenas uma forma de deixar o filme mais longo, mas após várias considerações, foi encontrado o lado metafórico do filme, e cada papel tem seu devido significado. O imperador claramente simboliza o público em geral, sem o talento para apreciar o que lhe é mostrado, totalmente influenciado pela crítica e que é uma hipérbole de como esse mesmo público é capaz de conduzir a vida dos grandes artistas. Os conselheiros do imperador simbolizam os meios de comunicação que costumam ter um papel em influenciar a opinião do público e normalmente não costumam concordar entre si, mas que quando querem, são capazes de levar um artista à ruína. Seguindo por essa linha, Salieri tem o papel dos críticos, que por diversos motivos tentam causar a desgraça de alguém, ou também artistas frustrados que não conseguem carregar o fardo de ver um companheiro de profissão atingir o nível que eles jamais conseguiriam.

Apenas o cinema estadunidense consegue fazer filmes de tamanho escopo artístico, embora a maioria das superproduções sejam filmadas fora das terras do tio Sam. Mesmo não tendo a profundidade intelectual do cinema europeu e asiático, é fato que em matéria de extravagâncias ninguém ganha dos americanos. "Amadeus" representa o ápice do requinte em produções de época, filmado nas belíssimas locações na Áustria e República Tcheca, o que criou um ar de veracidade a tudo que se via na tela. São poucas as produções que conseguem obter tamanho êxito em matéria visual, com todos os elementos trabalhando na mais perfeita harmonia de figurino, fotografia, direção de arte e todos os outros ramos responsáveis por organizar tudo que nos é apresentado.

Em 2002, o filme recebeu uma "versão do diretor", com vinte minutos de cenas estendidas e/ou cortadas da versão original. Muitas delas não adicionam muito à narrativa, apenas enfatizam o que já havia sido mostrado, com exceção de uma: a cena em que a esposa de Mozart, Constanza (Elizabeth Berridge), visita Salieri para pedir que ele ajude seu marido a conseguir um emprego. Na montagem original, ela apenas pede ajuda, mas na versão estendida é criado uma sub-trama em torno dos dois personagens, em que Salieri simplesmente humilha a mulher, o que nos dá uma diferente forma de interpretar a reação dela ao ver Salieri junto de Mozart logo antes de sua morte. As outras cenas excluídas da versão original apenas adicionam profundidade à irresponsabilidade de Mozart e elevam o nível de sua decadência, além das artimanhas de Salieri para destruir seu rival.

Ao acabar de contar sua história de inveja e traição, Salieri olha para o padre para quem está se confessando, e este mostra uma expressão perplexa de puro choque após tudo que ouviu, pois todas suas crenças foram contraditas por Salieri. Para um religioso, aceitar o fato de que Deus preferiu matar sua criação e seu porta-voz em favor de não ajudar o compositor desprovido de talento não é tarefa fácil, o que justifica a reação do padre. Salieri então se intitula o rei dos medíocres e sai absolvendo todos que ele vê pelo caminho. A pessoa retratada na tela pode ser a mais medíocre possível, mas em matéria de atuação e de filme, essa obra-prima passa longe do terreno da mediocridade.